quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Repetições

Sempre julguei minha mãe pela atitude de perdoar traições. Recriminava ela por ser fraca e não saber dar um basta a cada dilaceração da carne, da alma, de não conseguir fechar as torneiras das lágrimas. Sempre chorou escondido, pra não machucar quem a visse sofrendo.
Na verdade, passei grande parte da minha vida admirando a força que ela tem de se reconstruir dessas quedas horríveis. Sempre escondida atrás de bulas e pílulas coloridas, mas sempre erguida.
Diz-se que quando não se enfrenta um problema, a fuga acaba trazendo o problema novamente em forma de repetição e que assim se vai, em loop, fazendo tudo de novo várias e várias vezes. Mas se a gente fica, será que é por que somos fortes ou por que somos fracos e não conseguimos fugir?
Aquela vida perfeita escorrendo entre dedos, junto ao sangue que escorre pelas fendas dos pulsos. De repente, a gente percebe que tudo o que condenamos nossos pais acontece exatamente conosco. Ele fez comigo exatamente o que o pai dele fez com a mãe dele. E eu faço com ele exatamente a mesma coisa que minha mãe faz com meu pai. Ele odeia o pai dele pelas atitudes estas, e eu odeio minha mãe por ser tão fraca e burra a ponto de não conseguir se livrar do que dói nela.
Enfio o dedo em riste no nariz de mamãe; ao mesmo tempo, sento e choro, sem forças, por não saber como escapar dessa enxurrada de lama e piche que me queima e me afunda.
Mais uma vez, tento ressuscitar através de uma faca que me corta e me salpica em encarnado a pele branca. Mais uma vez, todas as chagas se reabrem e eu não sei mais se quero conseguir.
O que é que tem de tão ruim em mim?

sábado, 3 de outubro de 2015

2006

Todo mundo tem, na vida, vontade de entrar em uma máquina do tempo e voltar alguns anos. Voltar e fazer algumas coisas diferentes, arriscar mais, se permitir, acertar em alguns pontos que só agora, muitos anos depois, sabemos exatamente que fariam toda a diferença se a atitude tomada tivesse sido outra.
Eu, sem apelidos ou pseudônimos, sinto uma saudade gigante do ano de 2006. Mais especificamente do período de janeiro a qualquer data antes de setembro. Eu sinto falta da minha inocência, dos sonhos que quis realizar, de todas as pessoas que não conheci e que eram tão mais minha família do que a minha própria. Saudade do período em que minhas oscilações eram breves e não me machucavam além de uns cortes por baixo da roupa.
Foi em 2006 que comecei a escrever. Sempre fizera alguns rabiscos, mas os jogava fora logo na sequência por vergonha de ter tentado me explicar em palavras. De repente, eu tinha uma agenda recheada de poemas, histórias e situações, tristes e felizes, minhas e só minhas. E nada fazia sentido ao mesmo tempo que fazia.
Eu voltaria para 2006 e faria tudo exatamente igual. Não agiria diferente em nada pelo simples motivo de que foi delicioso viver cada saudade. Em compensação, se eu pudesse, faria setembro ser diferente e fugiria do dia 1º de outubro. Daquele ano para hoje, já se passaram nove dias 1º de outubro e tudo o que queria era voltar alguns meses. Alguns anos. Quase uma década.

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

De onde vem a calma

Foram alguns segundos. Poucos, mas suficientes. Segundos tão significativos e iluminados pela luz do vagão metálico apressado. A próxima parada já era a nossa, e, por aqueles segundos, não me importei com a rapidez que o tempo passava. Havíamos construído um momento sólido de algo muito bom.
A felicidade, que sempre me foi difícil nutrir, vem se prolongando em acordes interligados e harmoniosos. O olhar levemente esverdeado olhava minha íris azulada, transferindo a correspondência de sentimentos. Incrível como as coisas mantêm o seu sentido e, um ano depois, eu ainda vejo as covinhas das bochechas dele e não deixo de me derreter.
No trem, nossos rostos de frente um para o outro. Eu não consegui esconder o sorriso que a ele pertence Também, esconder para quê?! Aquele dia desgastante vinha a se transformar em um manto de aconchego. Ainda que aqueles segundos tenham sido desenhados no fundo das minhas pupilas, todas as horas que antecederam o instante foram tão intensas, tão fáceis de respirar... A verdade é que cada dia com ele é um presente. Cada sorriso é minha calma.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

O outro céu

O riso dançando em uma espiral tão perfeita com o riso de Alice. Ela desviou o olhar e chegou perto dele. A respiração daquele moço tão perto. O ar das narinas dele escorregando tão esperto pelo pescoço - e Alice ria. 

I go crazy, cause here isn't where I wanna be
And satisfaction feels like a distant memory
And I can't help myself

Os lábios dele esculpindo um castelo na pele dela, tão branca, tão vermelha, tão dele. Os olhos que não se podiam ver. E a dança dos risos deu espaço para o silêncio de uma chuva forte que envolveu os pés sujos da poeira da rua. O silêncio gélido cantando acordes com a respiração quente.

I guess what I'm traying to say is I need the deep end
Keep imagining meeting, wished away entire lifetimes
Unfair we're not somewhere
Misbehaving for days

A blusa foi rasgada. A mão dele puxou os cabelos dela pela nuca. A outra mão deu esperança à cintura que se alinhava ao quadril dele. A pele renascendo nova em arranhões, gotas ásperas de sangue. Pessoas que se apaixonam.
Alice libertava-se. Abriu os olhos mas não viu nada. Era noite e a escuridão embriagava com tanta força que gritou. Gritou e passou a conviver com o infinito de cada arrepio, sabor, aroma... A agressividade sensitiva. Finalmente, a eternidade era dela!

Em um sobressalto, acordou. A dimensão da realidade e do sonho eram a mesma morte. A blusa seguia inteira e os lençóis no mesmo lugar. As lágrimas do amanhecer eram a eternidade em chibatadas no frescor da pele. Respirou fundo. Era só um novo dia e ele estava longe apenas pelo tempo que ela determinaria.



All I wanna hear her say is "Are you mine?"
Well, are you mine?
Are you mine tomorrow?
Are you mine? Or just mine tonight?
Are you mine?

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Simples

Danilo foi embora e, dessa vez, eu não me importei. Achei que doeria, me magoaria... Mas não senti nada. Ele foi embora e eu me levantei da cadeira para pegar um copo d'água. Encontrei um pote de doce de leite e comi de colher. Como é gostoso doce de leite!
Já doeu tanto. Tantas outras vezes. Ele foi embora tantas outras...
Não é um sentimento de liberdade e não sei se vou ser compreensível aqui. Ele sempre vai ser a pessoa mais importante da minha vida. Ele sempre vai. Por quê? Porque ele é inalcançável. Coloquei ele em cima de um altar e percebi o quão lindo ele fica lá. E tão lindo ele ficou que é lá que eu quero que ele fique.
Ele foi embora, mas e daí? Quem não vai? Eu já fui embora. Já fui embora tantas vezes mais. E acabei voltando e partindo tantas vezes eu quis. É assim que vai ser.
As músicas vão vir e ele vai continuar. Ele vai partir e eu vou continuar. Ele vai ser sempre a pessoa mais importante. Porque eu quero que seja. Porque eu apaguei todos os defeitos dele. Porque a família dele é a minha.
Eu sei que quando ele vir uma lagartixa, ele vai espichar o "érre" pra falar que viu. E que vai lembrar de mim, tão branca quanto ela. Os olhos azuis e os olhos verdes.
Danilo foi embora e eu finalmente consegui respirar. Dormir.

sábado, 25 de abril de 2015

Strike!

A semana se preenchia daqueles dias recheados de névoa. Era quinta-feira - o final da semana se aproximava -, mas a sensação era de que iniciava-se, com um certo pesar triste, a jornada dos dias úteis. O peso da rotina de acordar-trabalhar-estudar-dormir cada vez mais denso. O desejo íntimo era apenas de, ao final do dia, permanecer naquele silêncio só nosso.
Não era tão frio quanto parecia ser e eu realmente não fazia ideia para onde ele resolvera me levar. A noite começou naquele momento em um calhamaço de surpresas recheadas de boas sensações. Ele conhece meus gostos e trejeitos a ponto de, após tantas risadas na pizzaria, me fazer cruzar uma porta de vidro giratória.
Lá estávamos, Johnny e June, jogando bolas de boliche em direção aos pinos. Um contra o outro. A rivalidade deliciosa confundindo-se com a partilha da alegria a cada acerto. Fazíamos parte do mesmo time.



Estar em um relacionamento é simplesmente perceber que os presentes ganham-se todos os dias, em cada sorriso, gesto e beijo, e não em datas comemorativas clichês. Surpresas não são obrigações. Sentir não é digno de nota fiscal. 
Aquelas cores todas que eu aprendi a ver com ele? Ainda as enxergo e, inacreditavelmente, ainda existem matizes novas. 

domingo, 29 de março de 2015

Interrupção

Adam estava longe, mas algo em suas pintas de dálmata sabiam exatamente que tudo o que eu queria era deitar no chão ao lado dele e ficar rolando, brincando, criança.
Quanto uma dor pode te mudar? Quanto tu deixa de realizar por se preocupar?



Eu liguei pra ele tão pouco tempo antes de. e ele tinha me atendido feliz. "Oi, filha!". Sempre fui a filha, mesmo nunca. Ainda, tantos anos mais cedo e aquele "Oi, filha. Ele não tá, mas feliz aniversário pra você, viu?". E, hoje, tão longe da data em que deixou ele eternamente sentado naquele sofá que eu nunca sentei, ...  hoje eu aceitei em mim a falta que ele me faz, sem nunca ter sido meu pai.
Adam deve ter sofrido. Ela, "Oi, filha!", me disse que sentia a presença dele na casa. "É como se ele estivesse ali, resmungando na frente da tv, 'Mulher! Vem rápido ver isso!' impaciente, com o cigarro e o carinho. Às vezes eu olho e não acredito que ele não tá mais ali."
Falta tempo até agosto, mas já se passaram quase quatro anos e só agora eu consegui aceitar essa dor que é tanto tua quanto minha. Essa família que nunca foi minha. Que sempre me tratou como se fosse.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Consertar

Quando percebi, ela já havia juntado todos os pedaços que quebrei, todas as roupas que já não serviam, todas as dores de cabeça que espalhara pela cabeceira da cama, e, cuidadosamente, havia arrumado tudo dentro de uma mala. Ela foi silenciosa - tinha essa mania de não querer incomodar, não querer se fazer notar.

Foi no momento em que ela me sorriu com um breve ódio que pude entender o que tinha dentro da mala e que ela não voltaria para buscar os sorrisos que deixara pendurados no varal da minha memória. A porta estava aberta e ela já havia atravessado o primeiro pé para fora. Por algum questionável motivo, o outro pé permanecia dentro do apartamento. Talvez ela suspirasse a dor de soltar os últimos fios; deixar de ser boneco de madeira para se transformar em mulher.
Tive medo. Ela estava decidida a ir embora e jamais olharia para trás. Como uma única reação, gritei. Gritei para que ela ficasse. Devagar, ela voltou seu rosto magro para mim, que, inerte, observava aquele único momento sem me dar por conta no que antecedera tudo. Por que ela tinha olheiras? Por que sua pele mostrava  tantos ossos? Por que tantas cicatrizes no fundo das pupilas? A face dela já não esboçava nenhuma reação e foi então que percebi que as mãos dela sangravam os cacos de vidro que ela mastigava.
A mala, que estava na rua, foi puxada para quase dentro do apartamento. Um pé seguiu do lado de fora e o outro do lado de dentro. Cansada, ela sentou em cima da bagagem e chorou. Chorou de uma forma tão dolorida toda a insuficiência dos passos que fizera até ali e eu, tão distante, não pude sequer limpar as lágrimas que lhe escorriam tão ligeiras quanto tempestade. As pessoas quebram.

sábado, 7 de fevereiro de 2015

I walk the line

Era sempre aquele encontro e desencontro. Eles se gostavam, mas tinham medo. A vida estampara no rosto de ambos cicatrizes fundas, grossas e terrivelmente assustadoras. Cicatrizes que só quem se enxerga no espelho é capaz de ver. O tempo de um era diferente do tempo do outro, embora tivessem se cruzado naquele horário.

"Tu é a pessoa certa na hora errada."



Johnny Cash era um cara incrível. Ele carregava uma bagagem histórica emocional absurda. Se ele sabia lidar com isso da forma correta? Não sei. Não convivi com ele. Mas eu sei que ele fazia música sobre isso. Música de tons tristes, intensos, impactantes e confortantes, até certo ponto. Músicas que abraçaram o mundo todo e sem um público alvo definido. Cash tinha a família dele, os amigos dele, os problemas dele. Ele tinha um violão, um timbre único e outras coisas. Certamente nenhuma tiete quis saber sobre como ele se sentia: ele já estava em um pedestal.
No meio de um turbilhão de acontecimentos, ele conheceu, ao vivo e a cores, em pele e calor, June Carter. June, da mesma forma, também carregava em si alguns cortes abertos que a mídia espalhou sem, possivelmente, se importar com aquilo que realmente não transparecia. Eles eram as pessoas certas nos seus momentos errados. Eles se gostavam e se queriam bem, mas tinha algo de mais oculto na situação toda que impossibilitava eles de. O timing não era aquele. E entre tantas e tantas idas e vindas, eles poderiam ter se perdido.

"Eu tenho medo que a gente se perca, porque as pessoas se perdem muito por aí."

Quando Johnny Cash surtou, em decorrência do vício dos comprimidos (ou melhor, em busca de uma tentativa auto-destrutiva de fuga dos tantos tombos que a vida proporcionara), ela esteve lá. E ela, June, foi a melhor mulher que ela poderia ter sido. Não era por quem ele representava, mas por quem ele era. E por mais que ela nutrisse dúvidas e incertezas com relação a ele, ela não abandonou quando pôde. Ela ficou com ele. Ajudou e cuidou dele. Mostrou que ele poderia ser amado, mesmo que ele não acreditasse que fosse possível. Não daquela forma.

Sobre essa história toda, a frase (chavão) que eu mais gosto é aquela "Essa manhã, com ela, tomando café-da-manhã", quando pediram para ele descrever como o paraíso lhe parecia.

Observação final: Mesmo não tendo sido exatamente por isso, mas se tu tiveres um livro pequeno, de capa vermelha e título escrito em dourado, com uma dedicatória singela com uma música do Johnny Cash, é porque...

"Tu é incrível. Tão incrível quanto única. E pensar que eu tive que vir de tão longe para te conhecer por acidente e agora não quero mais desconhecer. Tu me faz querer ser o melhor que eu posso ser. E eu te amo por isso."

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

De: Para:

Quiçá venha a ser um pouco enjoativo, aos olhos de quem me lê, a percepção de que derramo essa alegria incessante em meus textos - situação que, outrora, era inexistente e, há algum tempo, consumou-se assídua. Contudo, sinto que preciso expôr esse mundo de novidades e tantas cores! Tantas, tantas cores... A verdade é que a tristeza encanta e seduz, mas apenas quem já sentiu a felicidade em sua mais pura essência poderá compreender as palavras que digo, o sorriso que carrego, a calmaria plena nesse arrebol de fim de tarde.

Eu já não vejo razão em falar dos meus olhos, e do quanto eles vazaram, enquanto apenas desejo exprimir o quanto os olhos dele, pequenos e expressivos, me convidam a ficar dentro de sua íris pela imensidão de tempo que o mar dos meus não consegue contar. E mesmo quando minhas pálpebras tombam, independentemente se em amanhecer, para desfrutar de sonhos em seu sono, ou pelo singelo gesto de piscar, lá estão, ambos - âmbar/castanho/verde/multicolores - a me enlaçar contra seu peito.
Talvez tudo tenha acontecido assim: um jogo de pupilas; porém, foi no sorriso dele que depositei meu maior encanto. Uma desordem doce de desenhos com traço firme. Desesperadamente intocável e absurdamente tão próximo...

A cada segundo em que ele me mostrava quem ele é, por quem tinha sido, enquanto estávamos escondidos na negritude das estrelas do inverno, fui aceitando aquele lugar no peito dele que ele me oferecia querendo e sem querer. Fui aceitando e não me dispus a abandonar. Em tantas ondas fomos mar e espuma, e o cais surgiu sem muito esforço. Leviatã mostrou suas escamas, porém não nos deixou ofuscar pelo seu brilho doente. Assim, quando pela primeira vez ele me cedeu a mão, eu fui dele e dele permaneci. Nele permaneci.



Dentre todas as opções deste mundo, mesmo assim, eu ainda te escolheria. Todos os dias.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

She is so blue...

Menina Alice olhou pela janela. Há tantos anos, ela vem olhando pela janela e imaginando como é tocar aquele horizonte... tão longe e colorido. Seguir para onde suas pernas guiarem e apenas parar quando vier o cansaço.

- Diz que volta?
- Volto?
- Que volta e me leva embora. Para qualquer lugar. Para longe. Longe daqui.
- Jura?
- "Longe é o lugar onde a gente pode ser feliz de verdade." Tão fácil, né?
- Acho que tu deveria acreditar. Comigo funcionou.

Enquanto escurecia, a gente descia a rua. Em silêncio. Um silêncio tão nosso, mas que era só dele. Os hálitos de vinho branco. A despedida que viria. Tantas despedidas. Todas com o mesmo significado. O mesmo peso.

- Não temos fotos juntos. Não necessariamente de rostos, sabe? Mas fotos... Fotos de qualquer coisa, em que estivemos presentes. Juntos. Não temos.
- "Melhor lugar para se guardar um vinho é na memória.". Acho que se aplica aqui.
- Vinho branco?
- Haha

Finalmente tombou a noite e a menina Alice estava, mais uma vez, na luz sintética do vagão do trem. O barulho metálico. As bochechas ardidas de sorrisos, as lágrimas grossas ardendo os olhos e o peito inflamado. Carregava todos os últimos dois anos de brigas, dramas, conversas e risadas.
Os seres humanos têm o dom de elevar aquilo de mais intenso que há em suas relações. Ravel ensinou Alice a ser menina. Eternamente.


- Adoro o modo como tu te entrega ao que tu gosta. Isso me faz eu te admirar muito.

Finding a light in a world of ruin
Starting to dance when the earth is caving in

We're ready to begin

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Plenitude

Lembrei do dia que eu fui embora da casa dele - que "deveria ter sido" o último dia (coloquei entre aspas justamente porque nunca deveria ter sido, assim como não veio a ser). Relembrei o ar gelado mordiscando as minhas bochechas logo que coloquei o pé na rua, bem como o momento em que parei no meio da calçada para dizer em voz alta que eu precisava entender que ele não era mais meu. (...) E lembrei disso tudo para poder me encontrar, minutos antes, passando meus dedos por entre os cabelos dele enquanto observava cada traço daquele rosto. Dentro de mim, eu explodia. A convicção de que a palavra "amor" não era apenas um jargão da linguagem juvenil.

Numa dessas noites castigantes de verão, fomos tecendo histórias. Em cada ponto, lá estava um pouquinho de mim. Um pouquinho dele. Um entrelaçamento dos nossos íntimos. E exatamente aonde me deparei com um breve nó, segurei um choro que não tardou. Mesmo sem me ver, ele sabia que eu chovia. Cada lágrima era uma gota no copo que transborda.
Eu choro o tempo todo, mas nem sempre significa que é algo ruim. Naquela noite, eu amadureci tantos anos quanto não achei que pudesse. Quando amanheceu, eu estava plena.

A lembrança desse homem veio tão forte em mim que eu pude sentir os meus dedos passeando pelos cabelos escuros dele. Fechei os meus olhos e vi o olhar distante e inteligente dele passeando preocupado naquele ponto da minha perna. O nariz perfeitamente desenhado e a tez franzida. As cores... 
E em meio a tanta saudade, aceitei que não devo tentar entender. Apenas, sentir.



Ps: as pessoas se perdem muito por aí e nós não: nós estamos no lugar certo.