terça-feira, 24 de junho de 2014

Réflexe acoustique

Há muito tempo, decorrente de outras histórias, sofri ouvindo "Hurt" do Johnny Cash. Hoje, todos esses anos após, surgiu de um violão o dedilhado inicial que me fez trincar por dentro. Talvez eu tenha ficado muito tempo imóvel, tentando manter em mim cada pedaço no lugar... Mas foi com os dedos daquele moço, tocando com tanta dor cada corda do violão, que eu fui me transformando em pedacinhos.
Meus pensamentos estavam turvos e se esvaíram junto com todos os rodopios da fumaça do cigarro. Não lembro exatamente como, mas a música parou e, mesmo assim, prosseguiu ecoando na minha cabeça durante tanto tempo mais...

If I could start again
A million miles away
I would keep myself
I would find a way



Tive a impressão que olhei-me no espelho no momento errado - ou talvez eu tenha apenas conseguido ver o que todo mundo percebe e que eu negava enxergar todos os dias: eu era aquela xícara favorita que quebrara tantas vezes a ponto de se transformar em um amontoado de retalhos unidos com super-bonder. Deixei de ser aquele objeto cotidiano e bem querido para me transformar em uma confecção descartável. Ainda assim, só queria poder ser capaz de transbordar uma última vez...

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Pulp fiction

Com as vontades escondidas embaixo da jaqueta de couro, o rapaz, que carregava no olhar e na postura um pouco do que Elvis tinha, acendeu dois cigarros. E enquanto a fumaça rodopiava em sapatilhas de ponta, um deles foi parar na mão da moça, que agradeceu a gentileza com os olhos. Era noite e as únicas luzes que o lugar apresentava estavam ocupadas beijando o tapete verde recheado de bolas de bilhar.
Envoltos pelo barulho, entre eles passeava um respirar silencioso - como se aguardassem o exato momento para. Enquanto, as fumaças iam deslizando pelos dedos e gargantas, acariciando as faces. Sem pedir permissão - porque não era preciso -, o rapaz pegou a mão da moça, e se deslocaram para um pequeno espaço onde era possível dançar. Ali, em suas mentes, montaram um pequeno palco onde, por uma brevidade de segundos, fez-se os anos 1950.
Os sorrisos, outrora tímidos, se consolidaram entre giros. Ninguém precisou explicar; todos entenderam o que havia acabado de acontecer.


sábado, 7 de junho de 2014

Algum tipo de ponto.

As faces coradas gritavam desesperadamente a expressão de arrependimento. Embora as palavras não viessem, e o silêncio dominasse aquele quarto, nossos olhos se comunicavam: os dele me diziam que eu não devia... me questionavam por que eu era... E os meus respondiam, desculpando-se, que eu não... que eu me vestia de culpas...
Lá fora, a negritude riscada da noite que chove. Dentro de mim, algo havia trincado, mas eu não conseguia ver onde.
A mudez dos corpos, envergonhados por terem se divertido extinguindo a saudade, acabou quando minha voz apresentou-se:
- Teu rosto está horrível!
Enquanto eu segurava o desespero entalado na goela, ele me segurou pelos ombros, na tentativa falsa de me fazer entender que estava tudo bem.
- Não venho mais aqui.
Em insistência, engoli o que me rasgava e ele me abraçou, murmurando um "não" abafado. Parte dele me queria ali e parte dele queria que eu nunca tivesse aparecido.
Na porta da minha casa, usou de palavras para me tranquilizar - as mesmas que não dissera no momento em que nossos olhos conversaram. Uma a uma, iam se apresentando em tons mentirosos, unindo-se àquilo que eu sentia. E toda a alegria que me inundara, por ter aceitado aquela escuridão na minha pele, se transformou em uma culpa que não era minha, mas que eu carreguei com o aceite de todas as chagas embutidas.
O meu corpo tinha o cheiro dele e minha cama estava gelada. Mais uma vez, eu dormia só, embora fosse a primeira vez que arrependida por ter colocado tristeza nos olhos negros daquele homem. Ele voltou para a casa dele e também dormiria sozinho, enquanto o quarto mantinha o calor de nossa vergonha.




...And a sense of guilt I can't deny
What happened to the wonderful adventures?