sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Doer.

Escondida atrás da porta da cozinha, ela chorava. Silenciosa. Sentia que o sofrimento que carregava era incômodo aos demais. Não queria ser incômodo: queria apenas parar de doer!
A inércia das palavras presas na sua cabeça – mas que se negavam a sair para o mundo além dos seus lábios – lhe deixava aflita. Haviam anotações dos remorsos e angústias espalhados pela casa, em bilhetes rasgados, que só ela conseguia ver.

Como conjuga-se o verbo “doer” na primeira pessoa do singular do presente? Eu doo? Eu doo de doar? Doar dói?

Todas as visitas sensibilizadas pela palidez da pele, pela falta de brilho dos olhos verdes caídos. A família a perguntar da transparente saúde debilitada. E aquele sorriso amarelo surgindo forte, com a mesma frequência dos comentários desnecessários, murmurando um pobre “está tudo bem” - como se ouvindo sua voz em mentira, viesse a soar uma grande verdade.
Se não está tudo bem, mocinha, por que insistir que está? Por que insistir na dor, mocinha?


terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Os quadros da casa - parte II

O meu  quarto é um quadradinho triste. Nunca foi de grande aconchego, mas eu gostava dali. Das quatro paredes, três eram poluídas – uma era totalmente invisível graças ao armário, a outra abraçava uma janela e a terceira era parcialmente escondida pelo piano.
Quando a artista (conhecedora de arte?) revelou seu enorme desejo de colocar um quadro na única parede que era vazia, entristeci. Era como se aquela parede, virgem, fosse perder a capacidade de me dar oxigênio e eu me sentiria afogada em um lugar que deveria me tranquilizar nas únicas cinco horas em que eu passava habitando – mesmo que dormindo.
Falei que não queria, que colocasse o quadro em cima do piano! Os olhos gordos e brilhantes da moça, juntamente com o mascar compulsivo do chiclete gasto, pararam de exercer suas funções e terminaram em um muxoxo.
Pregado o quadro no lugar em que eu quis ainda tive de ouvir o comentário (in)feliz de uma terceira voz: “Agora te verás todos os dias!”
... Como se eu nunca me olhasse no espelho...

E eles estavam redecorando a casa, conjuntamente, em desestrutura.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Os quadros da casa - parte I

Eles estavam redecorando a casa e, para mim, isso não fazia sentido.


A família desestruturada, desmoronando, distante da idealização contida nas propagandas de margarina... E eles estavam redecorando a casa.
Talvez isso fosse um marco. Como se, inconscientemente, acreditassem que pregar quadros nas paredes fariam da casa um lar recheado de aconchego e, com isso, conseguissem tapear a feiura dos últimos anos de casados.
A cena patética do moço segurando o quadro em uma altura determinada, enquanto que os dois, ao mesmo tempo, falavam "mais para cima... mais para a direita... aí!" rindo, "felizes", entregou a mim um pouco de inveja. E isto, certamente, por crer que os dois eram ótimos quando separados e que juntos se anulavam. Ainda, eu deveria não querer acreditar que o significado daquelas risadas pudessem ser um sinal de que as coisas estivessem dando certo.
Toda a vida, um se submetia e o outro mandava. Os dois submissos. Os dois inseguros.