sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Epitáfio

Eu só queria que tu soubesses que, muito antes de eu existir em ti, eu era muito pior do que naquele momento. E eu sofri muito por ser daquele jeito. Eu lutei muito contra eu mesma.
E eu consegui vencer!
Eu venci eu própria! Eu fui linda e sincera comigo. E eu estava bem. Eu estava conseguindo permanecer em mim sem os remédios, sem as bengalas, sem os artifícios...
Só que hoje... Hoje eu tive uma recaída e não tinha ninguém para me erguer, estatelada no chão úmido, me dizer o quanto era estúpido eu voltar a ser aquela "eu mesma".
E eu me contive. Me dobrei em tantas dobras que eu quase não conseguia respirar.
Tudo o que eu usava para me auto-destruir, que o psiquiatra, naquela vez, me enumerou, eu consegui não usar. Eu não fumei compulsivamente. Na verdade, eu não fumei um cigarro sequer! Também não tentei conhecer ninguém novo, nem fiz questão de me mostrar "útil" para qualquer um. Eu sou tua. 
Mas eu bebi. E quanto mais eu bebia, mais eu tinha vontade de chorar. E a cada lágrima que mastiguei, eu quis ter um corte em mim. Uma dor presente. Algo que me dissesse: "Sim, Cass, tu estás viva ainda! Sim, Cass, algum dia isso vai parar de fazer sentido."
Essa coleção de tatuagens mal cicatrizadas, esses processos quelóides que estão bem dentro de mim e que só eu vejo... Só eu vejo. Se tu visses tudo o que eu vejo, possivelmente tu não me segurarias mais a mão.

"- Tu sente falta disso, né?"

Eu sinto. Eu sinto falta de alguém que me... Eu sinto falta de como eu era suficiente.

E então, vem a chuva desabar. Explode pelo vidro da janela. E eu vou pra rua e me deixo lavar. Como se fosse me fazer bem. Como se o pingo grosso e dolorido fosse levar embora todo esse buraco dessas chagas desses anos todos. E tudo o que consegui perceber é que não tinha ninguém ali além de mim. E que eu sinto frio.
Ravel sussurra dentro do meu peito: "É coragem. É coragem!"... Enquanto eu me sinto fraca. E fraca.

Se tu choras como dizes, me mostras que és de carne como eu.

sábado, 20 de setembro de 2014

Anoiteça e amanheça eu.

Era domingo, manhã, dia bonito. Pelas pálpebras fechadas, sentiu os raios finos, sinceros e dourados do Sol atravessando a veneziana fechada - que mantinham o quarto escuro - iluminando a lembrança colorida na memória. Percebeu uma breve agitação: ele havia acordado. Devagar, Alice abriu o mar dos olhos, sem ressaca, e fitou o rosto de Lestat. Ele a olhava com tanta doçura e de uma forma tão mansa, que o corpo dela e seu coração e seu sorriso vieram a transbordar.
Envergonhada, Alice puxou as cobertas até tapar toda a cabeça. Sorrindo, ele puxou a menina para bem perto de si. Fez-se travesseiro ao aninhá-la em seu peito. Calmamente, os cobertores foram descendo e reapareceu a tez rosácea das bochechas dela a fim de contemplar as pequenas covinhas que se faziam tão presentes nele quando, finalmente, aceitava a felicidade.



Não era necessário falar, jurar ou pensar qualquer palavra, situação ou expressão para entender o que seguia acontecendo. Ele estava ali e ela também estava.