domingo, 25 de março de 2018

Cinzas

   Eu respeito quem se ama. Respeito aqueles que conseguem olhar no espelho a própria imagem refletida e enxergar qualidades, beleza além da textura da pele, apaixonar-se por todas suas próprias atitudes. Respeito quem vai além das cicatrizes para recomeçar em todos os amanheceres.
   Honestamente, eu respeito com uma mescla de inveja. Eu já fui, mas eu não era. Alva. Eu me amava enquanto me destruía e agora que sou cinzas espalhadas já não compreendo como podia sentir. Não recordo com carinho dos corpos por onde me sujei, nem das lembranças que gostava de manter. Desconhecidos que nada significaram e contabilizaram números que nem sei mais contar. A pureza da minha tez eternamente manchada pela sujeira que só eu vejo. Todos os dias. O que eu fui. O inchaço do meu corpo advindo das minhas falhas. Morais. Físicas. Estruturais.
   E eu, com todas as minhas (im)perfeições superficiais, me deparo com essa qualquer que mantém um discurso tão falso quanto o amor próprio que insiste em mastigar nas colheradas de purpurina que usa para construir um mundo encantado de unicórnios e sereias. Este ser humano que finge estar satisfeita com traços corpóreos. Ninguém se importa com o que tu pensa. Plenitude vai além dos mantras que nos mantém a imaginação doentia.
   Aposto que tu, menina, se olha no espelho todas as manhãs e se vê grande e crescida, mas chora enquanto banha-se por não encontrar dentro de si o amor pela imagem e linguagem que constrói a espalha, porque a autoafirmação não nasce em espelhos, mas cresce do solo que queimou e deixou de ser fértil. Tu, rapariga, só terá capacidade de entender quando ouvir o som que vem abaixo dos teus pés tortos. A porcelana do teu cerne pode ser mantida por orações, mas a feiura de nossas almas nunca estarão limpas após um banho de chuva.


sábado, 24 de março de 2018

A volta de Gael

   Fazia tempo que Gael não se mostrava para Alice. Asas brancas e toda a pureza que uma alma bondosa carrega. Gael decidiu aparecer em sonhos e mostrar à menina a podridão do mundo, os males da carne, as dores que adormecem e pinicam a pele. A sujeira que não sai. Ele apareceu, mostrou, sorriu e desapareceu.
   Alice, sem nada compreender, ficou procurando o buraco para cair, mas já não o encontra. Não são mais apenas os sonhos. Piscar machuca a íris e as pálpebras carregam muito mais lágrimas do que conseguem suportar para se manterem erguidas.
   Acontece que a ingenuidade de Gael não conhece o mundo da mesma forma que Alice conhece. Cada um sofre da maneira que consegue pelos motivos que cada alma mantém. Um dia, talvez, Gael irá embora para sempre e Alice estará caindo constantemente no buraco que a levará ao país das maravilhas. Sem volta. Os sonhos irão se mesclar à realidade e tudo arderá muito mais.
   Ninguém nunca disse que ser anjo era bom. Ninguém nunca explicou que ser humano corrói. Ninguém jamais irá costurar a carne rasgada e limpar o pus que brota fétido da ferida do passado.


sexta-feira, 23 de março de 2018

As verdadeiras cores

   No meio de uma eterna fotografia em preto e branco, brota o meu sorriso trazendo tons doces de um passado que era colorido. Este meu sorrir ainda é teu. Sutilmente, as gotas douradas do sol vão pintando o teu rosto na minha memória e a saudade aperta a garganta. Lágrimas escorrem desenhando aquarelas em meu rosto e eu acho que está tudo bem.
   Respirar ficou mais fácil, de repente. Meu travesseiro se transforma em teu peito e eu sonho com uma pequena família: uma casa simples, patinhas felinas e pés nus de crianças lindas. Tudo é colorido e faz sentido... Mas eu abro os olhos e os tons de cinza reaparecem, porque a realidade não é a mesma de quando eu fecho os olhos.
   Ser feliz às vezes dói, às vezes está longe, às vezes é diferente do que se imagina. Contudo, o crispar leve dos lábios moldando a felicidade ainda existe e eu não vou desistir disso. Passa dia, passa ano e eu sou a tua mulher.