quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Espírito

   Toda vez que falo com Gael é uma lágrima minha que escorre.

   Não que seja de tristeza, mas é por reconhecer que há alguém que me conhece e se importa. É entender que anjos existem e que, nesse momento, só as asas negras e plumosas de Gael podem me ajudar, mesmo que tais asas sejam apenas algumas palavras do outro lado da tela.

   Ele me conhece e me entende e eu não me conheço e não me entendo.

   Toda essa luta diária entre o céu e o inferno dentro de mim... "A vida está boa", eu digo. "As coisas por aí não estão fáceis", ele traduz. 

   Mas, Gael, essa sensação de pessoa descartável que eu sinto que sou, não tem o que faça mudar. Entende que talvez, tudo o que eu tenha feito, seja para me sentir um minuto especial. Mesmo não sendo. Mesmo ninguém reconhecendo. Sim, Gael, eu sei que tu reconheces, mas cada sopro é diferente de cada grito e a minha loucura não tem cura mais.

   Um pouco mais e eu vou estar desistindo de mim, ó, anjo, e peço perdão antecipado por não poder te visitar. Eu me transformei nesse bicho asqueroso que nem as memórias recuperam o espírito. E o que sobra de mim sangra e arde e dói e sofre e segue...



terça-feira, 31 de março de 2020

Vontade de morrer

   Eu tive uma crise. Uma crise igual há muito tempo eu não tinha. Vontade de morrer. A verdade é que nada mais faz sentido como devia fazer. O que eu fiz com a minha vida? Que vontade de morrer... Dormir é impossível. As lágrimas brotam sem cessar uma a uma, pesadas e gordas. E é quando eu decido: Eu vou morrer.
   Tenho que escrever uma carta, penso. Mas dizer o quê? Que verdade animaria os que ficam? Não tenho vontade de dizer nada. Talvez seja melhor não ter carta alguma.
   Não consigo respirar em meio a tantas lágrimas. Que vontade incontrolável de morrer! O que eu tô deixando pra trás? Nada. Quem vai sentir minha falta? Ninguém vai. Que agonia! Que dor! E eu aqui, sozinha, nessa cama grande demais, nesse quarto vazio demais. Vazio que nem eu. E se eu morresse? As lágrimas. A dor. O sentir. A "sozinhez"...
   Não consigo pensar em nada que me diga para fazer o contrário. Acendo o último cigarro e sento no chão gélido. No meu pulso, o aviso: "You will find a way to fight another day". O aviso que eu nunca lembro. É tarde. O sono não vem. Ninguém vem. Não faz mais diferença. Talvez nunca tenha feito.

domingo, 29 de março de 2020

O trem

   Não se ouve mais o barulho do trem. Essa doença suspendeu até esse meu único deleite. Deitada na cama de lençóis azuis, os cabelos alaranjados contrastavam. A tez da minha pele combinando com as páginas pálidas do livro. Os óculos; o café; o cigarro invisível. Saudade de escrever. De ler. De viver.
   Sempre culpei as pílulas, mas talvez eu tenha mudado por mudar e não por causa delas. Por conveniência. Não sou mais criança, apesar de me portar como uma às vezes. Saudade de me portar como criança e isso ser lindo aos olhos de todos. Saudade de ter todos os amigos reunidos. Sábado à tarde. Os trilhos do trem.
   Saudade do barulho do trem. As vozes do trem, o marchar, o som metálico abraçando minha retina. A metamorfose imaginária que só eu entendo. Eu e ele, um anjo de 60 toneladas.


quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Wonderland

   Sabe, pode parecer meio clichê, mas acho que nossa vida é como um grande livro: cheio de capítulos mal escritos e bem definidos. Cada capítulo é munido por fases, pessoas, buracos, coelhos brancos e rainhas de copas.
   Talvez o que tu esteja vivendo agora seja um capítulo de algo escuro e triste, mas não significa que a história toda esteja contaminada, certo?

   Na verdade, estou tentando te animar. A vida não é um livro feliz e nem o da Alice. O país das maravilhas na realidade é recheado de maldade e mistérios enlouquecedores. E nós estamos todos nele, cada um em seu 'país das maravilhas' particular.


terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Tempestade

   Eu te entendo perfeitamente, Gael.
   Não precisa ter medo. Esse vazio existe e preenche. Esse estado não passa. É isso o que somos: essa imensa vontade de deixar de existir sem deixar de existir. O tempo todo.
   Somos essa montanha de questionamentos do que deveríamos ter feito melhor ou o que fizemos de melhor e o outro não aceitou ou rejeitou. Somos esse não saber eterno e, meu deus!, que agonia que é viver.
   Eu te entendo perfeitamente, meu bem. Talvez bem até demais, porque eu vivi essa falta de ar diariamente e hoje eu já não sinto nada. A dor deixa de doer, mas não deixa de existir. Ela anestesia e a gente aprende a conviver com esse vazio que existe e preenche.


quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

A lâmina


Tudo o que o silêncio carrega
Rasga o peito em sonhos dilacerados
As ondas que não estão no mar
O azul que a gente foi
O que a gente foi
E foi.

Flutua de volta o passado em mim
Traz as lágrimas e o vazio
É o fim. É o frio.
É o que a gente foi
E será.
Nunca mais.

Os ritmos daquela dança
A angústia das noites sem dormir
A lâmina que brilha e sorri
Os caminhos que nos deixaram cegos
A cegueira que foi.

E se tudo rasgasse, explodisse, voasse?
E se tudo voltasse, amasse, doesse?
Ficaria a calma do teu corpo no meu corpo
Manteria a dor em cada esconderijo
Tudo de novo?

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Migalhas

   Alice se alimenta de migalhas.

  Talvez agora ela entenda a fúria, mas o vazio continua não preenchido. Os ossos seguem doendo e a face se estica em um sorriso amarelo.

   Alice agora é um passarinho. E voa. Voa e se esquiva das pedras lançadas pelos bodoques das crianças más. Voa e mergulha através e pelo som, dos estalidos, da angústia, da raiva.

   No bico, apenas migalhas.