sábado, 29 de novembro de 2014

Os quadros da casa - parte III

Tão decidida a manter aquela parede em branco, respirando vazia frente aos tumultos desorganizados da poluição das outras paredes do quarto que possessivamente chamo de meu, deparei-me em contradição. De Lestat, à parte de todas as imaterialidades que me concede, ganhei um quadro e eternos sorrisos que vão se construindo e mantendo em meus lábios.
O quadro é enorme e tão lindo, em preto e branco, com um breve detalhe em vermelho - uma explosão de cor, sentimento, paixão e raiva em meio à paisagem tão conhecida pela minha íris. Chove em Paris e cada traço me empurra cada vez mais dentro daquilo que fui deliciosamente obrigada a viver e arrancada da construção do meu mundo.
Eu acreditei que a parede respirava, sozinha e nua, quando, em meio àquele espaço, pus minha ambição em molduras. Esse homem entendeu meus sonhos quando, em silêncio, eu respirei a vontade de voltar às lembranças que eram minhas. A infância. Os melhores sentimentos. O quadro fez-se janela à menina do quadro ao lado, na parede comunicante, que observa um lugar onde eu consigo respirar de verdade. Lá, eu fui. E eu voltarei - para ficar. Em mim.


"Quando você já acorda, a vida já passou."

Não quis a luz do dia hoje. Deixei a veneziana do quarto encerrada o tempo todo em que houve Sol. O medo de sentir arder as retinas. O medo de adormecer. De dormir demais... E eu dormi. E ele tava lá, dentro de mim, me mostrando com todas as gotas de suor escorrendo pelas costas, todos os meus medos que eu nunca quis ver. Que nunca me doeram. Que, na verdade, eu sempre fugi de pensar a respeito para que não doessem, porque, apenas no pensar 'só um pouquinho', meus olhos já vazam feridas de algo que nunca cicatrizará. E todo o pus que escorre sou eu. Sou eu tendo nojo de mim mesma. Sou eu tendo vergonha de todas as dores que eu causei em silêncio sem ninguém nunca saber. Só eu sei. E só em mim arde a dor. Só em mim.
Sou eu tendo medo. Eu, que sempre tratei o "ter medo" como uma opção. Eu, que sempre caí, sempre estive com escoriações pelo corpo inteiro, com equimoses, hematomas, e todos os termos técnicos para tudo aquilo que a pele mostra que um dia doeu. Todas essas cicatrizes dentro de mim, escondidas por um sorriso tão maior que eu, mas que minha boca expele sem, muitas vezes, saber o motivo. Eu, que sempre caí, continuei andando de joelhos, em carne viva, para não parar no caminho. Só para não ter que reconstruir. Reconstruir leva tempo e nós nunca temos tempo.

"Quando você acorda, a vida já passou."¹

E ele estava lá e escorria suor em cima de outra que não era eu. E eu batia nele com raiva e chorava querendo expulsar de mim todos os momentos felizes que nós tivemos - como se fosse possível apagar da memória as cenas que a gente não quer ver. E ele ria de mim. Ele ria.
Eu não sei mais ser a melhor. E de nada adianta usar saltos todos os dias se eu não sinto minhas pernas. De nada adianta ter a postura invejável, se eu me dilacero de vergonha. "Tu é grande, tu é forte!", ele me disse e me fez repetir. Mas foram outras as palavras que eu disse e que ele não quis ouvir. As palavras que eu nunca disse e que ele nunca vai saber. O incômodo que sou.

"E eu suei nos teus lençóis a frase com a qual eu te engasguei quando tu me engoliu."²

¹ CANEPPELE, Ismael. "Os famosos e os duendes da morte" - São Paulo: Iluminuras, 2010.
² http://antiteses.bandcamp.com/track/at-um-outro-dia

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Borboletas

Era domingo e a menina estava esperando, sem muita pressa - nem muita vontade, a vinda da segunda-feira. Já era tarde da noite, também. Deveria estar dormindo! O dia seguinte seria longo e possivelmente não agradável. Um barulhinho conhecido rasgou o silêncio debaixo da cama: havia perdido o celular e acabara de encontrá-lo por um simples acaso. Alguém telefonava. Alguém lhe desejava falar.
Ao ver de quem se tratava, a menina estranhou. Por milésimos de segundo, preocupou-se por pensar que algo ruim havia acontecido (ah!, essa mania que o ser humano tem de sempre esperar o pior...) e por outros milésimos de segundo, foi consumida por uma agonia: demorava demais para atender aquela ligação advinda daquele homem que, por algum motivo, queria ouvir sua voz.
Quando atendeu, o "oi" que surgiu do outro lado da linha lhe trouxe uma alegria inexplicável. Possivelmente aquela bobagem que escutamos sobre as borboletas no estômago...
- Liguei para dizer-te que faz uns minutos que estou deitado em minha cama e estou pensando em ti. Liguei para dizer-te que estou com saudades.
Aqueceu. Enrubesceu. Explodiu para fora de si todas aquelas palavras que não acreditava que ouvia. Não lembro exatamente o que a menina respondeu naquele momento, mas ela soube valorizar aquela atitude da melhor forma que poderia. Abraçou aquele homem em pensamento e refez em sua retina cada traço da pele dele. Desejou correr em direção àquela voz, mas era tarde... Era tarde da noite, apenas. Faria tudo para vê-lo assim que amanhecesse. E fez.
A menina fez, todos os dias que vieram na sequência, o que suas mãos pequenas conseguiam fazer. E enquanto descobria que o amava, descobria que se amava também.
Todas as chagas se fecharam. E as poucas e pequenas que permanecem abertas, ele as vem fechando com toda sua capacidade de oferecer sorrisos. Desde esse dia, ela o aceitou nela e ele, mesmo tendo tido alguns princípios de fuga, carregou-a junto a ele. Desde esse dia, eu te amo dentro de mim. Aceitei em meu ventre tantas borboletas quanto poderiam caber. Romperam os casulos e disse "sim" a uma invasão de tantas cores  quanto minha íris  nunca pensou ter capacidade de conseguir enxergar.


quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Querido Diário,
Hoje eu rompi em lágrimas. Conto como se fosse novidade, já que fazem alguns dias que eu não me transformava em chuva. Entretanto, dessa vez, não doeu. Não foi um ato de abandonar chagas. Muito pelo contrário: trouxe para dentro dos meus sapatos algumas pedrinhas pontudas para sangrar meus pés.
Faz umas noites que não tenho dormido. E mais umas tantas que tenho sido consumida por maus sonhos, nos poucos minutos de cochilo. Acontece que, infelizmente, esses pesadelos se incrustam em minha memória, confundindo-se às vivências doloridas que tive. Às vezes eu sinto que preciso sangrar para saber diferenciar isso tudo, para  conseguir respirar mais fundo.
O tempo está passando e eu continuo engolindo essas dores de cabeça que surgem sem motivo. O tempo vai passando e ainda estou com o cenho escondido às coisas que eu queria ser. Eu queria ser e não fui. Jamais serei.
(...)
Diário, tu és esta folha de papel inútil e morta, enquanto eu, aqui, faço de conta que tens vida e que conversas comigo esses anos todos, no mesmo transe em que minhas lágrimas morrem dançando com a água do chuveiro. Veja bem: hoje eu chorei e não senti nada. O dia amanheceu cinza também. E parece que essas últimas 24 horas duraram o mês todo mesmo que, ainda, daqui uns minutos, vai-se embora outro dia e eu não sei direito o que eu fiz com ele.

Obs.: Eu quero fugir de novo. Mas não quero fazer isso sem ele. 
Por que ele me entende?