quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Um pouco sobre mim

   Beatrice tinha sapatilhas vermelhas e vivia resmungando do quanto (e como) aquele lugar não era o lugar dela. "Queria voltar ao Kansas", dizia eu à ela, fazendo-a rir. Não sei se ela entendia corretamente a brincadeira, mas após seu desligamento da minha vida (um ano, exatamente), comprei eu um par de sapatilhas vermelhas para mim.
   Conto isto, pois percebi que todas as fotografias que fiz dos meus pés nestes últimos tantos anos, nenhuma vez emoldurei as ditas sapatilhas. Elas eram de camursa e acabei as arrebentando certa vez que inventei de andar de longboard.
   Pois bem, o que ninguém sabe é que eu as calçava com grande frequência e, quando estava triste, batia três vezes os calcanhares fazendo algum desejo para que as coisas melhorassem. 
   Do momento em que as vesti na loja ao momento que as descartei, elas percorreram comigo histórias que só eu sei: histórias que me arrependo tanto , lugares que se tornaram tortuosamente cicatrizes do meu âmago, jardins de paisagens tão lindas quanto o Kansas...
   Faz dois anos que o fantasma de Dorothy deixou de estar em minha companhia... e, inexplicavelmente, eu sinto falta da sensação completamente imaginária de segurança de poder "voltar para o meu lar" ao bater dos calcanhares. Nunca mais comprei sapatilhas vermelhas.


terça-feira, 9 de janeiro de 2018

A hora não é essa

   Não sou eu quem precisa te dizer que a hora não é essa. Não vai ser hoje ou amanhã. Que vai demorar anos ou que pode não chegar. A hora não é essa! As coisas acontecem quando tem que ser. Pode ser que já tenha acontecido e a gente não saiba, mas agora a trilha é outra. A música é outra. O ar é outro.
   Essa cidade toda maravilhosa, cheia de prédios, zumbis e falta de amor... eu já não gosto mais dela. Não é mais o meu lugar. Talvez nunca tenha sido a não ser na minha imaginação. Quem sabe algum dia eu volte a me sentir em casa em meio aos gritos dos vendedores e pessoas que se esbarram maleducadamente, mas a hora não é essa. Não é agora.
   As coisas que me ardem o peito não pararam de arder. Quiçá algum dia pararão. Se algum dia cessarem, aí será a hora. Cada um tem o seu tempo e aprendi a não atropelar as coisas que sinto por medo de perder o trem. Sempre vem outro, na hora que tiver que vir. A hora não é essa.
   A hora pode ser daqui dez anos (eu jamais saberia). Mas não subestime o que guardo adormecido dentro de mim, nem maldiga os meus esforços diários para engolir todo o mal que me fizeram / que eu me fiz. Hoje, eu busco tranquilidade e a minha paz está presente. Esta é a minha hora: a hora de eu ser minha, de repugnar/expulsar/exorcizar tudo o que não quero em mim. Eu quero a mim e essa é a hora. Hoje. Agora.