terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Consertar

Quando percebi, ela já havia juntado todos os pedaços que quebrei, todas as roupas que já não serviam, todas as dores de cabeça que espalhara pela cabeceira da cama, e, cuidadosamente, havia arrumado tudo dentro de uma mala. Ela foi silenciosa - tinha essa mania de não querer incomodar, não querer se fazer notar.

Foi no momento em que ela me sorriu com um breve ódio que pude entender o que tinha dentro da mala e que ela não voltaria para buscar os sorrisos que deixara pendurados no varal da minha memória. A porta estava aberta e ela já havia atravessado o primeiro pé para fora. Por algum questionável motivo, o outro pé permanecia dentro do apartamento. Talvez ela suspirasse a dor de soltar os últimos fios; deixar de ser boneco de madeira para se transformar em mulher.
Tive medo. Ela estava decidida a ir embora e jamais olharia para trás. Como uma única reação, gritei. Gritei para que ela ficasse. Devagar, ela voltou seu rosto magro para mim, que, inerte, observava aquele único momento sem me dar por conta no que antecedera tudo. Por que ela tinha olheiras? Por que sua pele mostrava  tantos ossos? Por que tantas cicatrizes no fundo das pupilas? A face dela já não esboçava nenhuma reação e foi então que percebi que as mãos dela sangravam os cacos de vidro que ela mastigava.
A mala, que estava na rua, foi puxada para quase dentro do apartamento. Um pé seguiu do lado de fora e o outro do lado de dentro. Cansada, ela sentou em cima da bagagem e chorou. Chorou de uma forma tão dolorida toda a insuficiência dos passos que fizera até ali e eu, tão distante, não pude sequer limpar as lágrimas que lhe escorriam tão ligeiras quanto tempestade. As pessoas quebram.

sábado, 7 de fevereiro de 2015

I walk the line

Era sempre aquele encontro e desencontro. Eles se gostavam, mas tinham medo. A vida estampara no rosto de ambos cicatrizes fundas, grossas e terrivelmente assustadoras. Cicatrizes que só quem se enxerga no espelho é capaz de ver. O tempo de um era diferente do tempo do outro, embora tivessem se cruzado naquele horário.

"Tu é a pessoa certa na hora errada."



Johnny Cash era um cara incrível. Ele carregava uma bagagem histórica emocional absurda. Se ele sabia lidar com isso da forma correta? Não sei. Não convivi com ele. Mas eu sei que ele fazia música sobre isso. Música de tons tristes, intensos, impactantes e confortantes, até certo ponto. Músicas que abraçaram o mundo todo e sem um público alvo definido. Cash tinha a família dele, os amigos dele, os problemas dele. Ele tinha um violão, um timbre único e outras coisas. Certamente nenhuma tiete quis saber sobre como ele se sentia: ele já estava em um pedestal.
No meio de um turbilhão de acontecimentos, ele conheceu, ao vivo e a cores, em pele e calor, June Carter. June, da mesma forma, também carregava em si alguns cortes abertos que a mídia espalhou sem, possivelmente, se importar com aquilo que realmente não transparecia. Eles eram as pessoas certas nos seus momentos errados. Eles se gostavam e se queriam bem, mas tinha algo de mais oculto na situação toda que impossibilitava eles de. O timing não era aquele. E entre tantas e tantas idas e vindas, eles poderiam ter se perdido.

"Eu tenho medo que a gente se perca, porque as pessoas se perdem muito por aí."

Quando Johnny Cash surtou, em decorrência do vício dos comprimidos (ou melhor, em busca de uma tentativa auto-destrutiva de fuga dos tantos tombos que a vida proporcionara), ela esteve lá. E ela, June, foi a melhor mulher que ela poderia ter sido. Não era por quem ele representava, mas por quem ele era. E por mais que ela nutrisse dúvidas e incertezas com relação a ele, ela não abandonou quando pôde. Ela ficou com ele. Ajudou e cuidou dele. Mostrou que ele poderia ser amado, mesmo que ele não acreditasse que fosse possível. Não daquela forma.

Sobre essa história toda, a frase (chavão) que eu mais gosto é aquela "Essa manhã, com ela, tomando café-da-manhã", quando pediram para ele descrever como o paraíso lhe parecia.

Observação final: Mesmo não tendo sido exatamente por isso, mas se tu tiveres um livro pequeno, de capa vermelha e título escrito em dourado, com uma dedicatória singela com uma música do Johnny Cash, é porque...

"Tu é incrível. Tão incrível quanto única. E pensar que eu tive que vir de tão longe para te conhecer por acidente e agora não quero mais desconhecer. Tu me faz querer ser o melhor que eu posso ser. E eu te amo por isso."