quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Sonata

Ela tentou morrer. Ela, tão forte e tão frágil, desistiu de si. Alice percebeu a ausência da menina dos olhos verdes e sardas nas bochechas, mas já era tarde. Ela, tão poderosa e tão delicada, deixou que um de seus extremos mais belos mergulhasse sua respiração em uma onda tão forte que quase a levou de vez. Ela, de um preciosismo único, se desfez em mil pedaços tal qual Alice anos antes.
- Tu te sentes frustrada ou aliviada de não ter conseguido? - perguntei.
- Frustrada. - Ela respondeu.
O instante que o ar se perde e nos sufoca é ensurdecedor. Toda a força se transforma em milhares de coisas que já não nos representa. Perde-se a essência. Os olhos já não enxergam o conjunto inteiro e o pulso aberto suplica ao corpo uma força que não existe para poder se estender ao pedido de socorro.
Os olhos adormecem, mas não vitrificam. O sangue verte, morno, incessantemente. Uma eternidade. Ninguém entenderá o motivo: esta sinfonia esculhambada que é a dor de estar vivo.

domingo, 27 de outubro de 2019

Things we could do

Termino meu cálice de espumante e mais uma vez ele está vazio e eu também. A janela permanece pendurada tão alta e tão deliciosamente satisfeita em seu lugar. Às vezes tudo parece uma tentação para deixar de ser.
Me deparei com um álbum chamado "things we could do" que eu salvei anos atrás. A música* vem à mente, as colorações do dia, os cheiros e sabores de Beatrice também. É algo que eu nunca vou superar, mesmo já não tendo mais razão de ser há muitas horas desde aquele ano tão estranho.

Drink up, baby, stay up all night with the things you could do (you won't, but you might)...

Eu reencontrei esse mesmo tom e as mesmas cores anos após com uma imensidão de dores. Coisas que, repito, nunca irei superar. Após a descoberta do amor de verdade nos tornamos frígidos e assim seremos até que a morte venha e destrua as lembranças que cada cerne carrega; o âmago desgastado com o whiskey que ela me ensinou a gostar e que ele me ensinou a beber.
Agora, todos os dias são monotom e o ar parece denso de respirar sem o cigarro. As coisas mudaram porque eu quis que mudassem, mas mudaram tanto que eu já não me encontro mais em mim.


*"Between the bars" - Elliot Smith

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Eolípila

   Meus textos são para ti, meu amor. Toda a sinceridade dos sentimentos que só tu foste capaz de despertar. Meus textos sempre serão para ti. Tem vezes que regurgito palavras e me arrependo, pois tu mereces palavras doces e não estabanadas como as últimas.
   Reitero que a imensidão de transtornos e cansaços que o futuro aguarda não vão desfazer o palpitar deste músculo tão forte em meu peito. Seremos eternamente as tormentas, a madrugada chuvosa, o caos. Nunca romperemos o que temos.
   E tal qual eolípila, incessantemente trabalhando, maquinam minhas memórias e mantém firme cada palavra dita, cada suor escorrido, cada ódio sentido. Não são só os textos que são para ti, meu amor, eu também sou.