sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

O Sétimo Selo


   Às vezes, Gael aparece em minha memória. As memórias não estão tão apagadas quanto deveriam (ou como gostaria que estivessem, talvez...). A verdade é que, sempre que Gael reaparece, ele vira palavras e revira as folhas das árvores com a ventania iluminada pelos trovões daquela noite de chuva.
   Chovia. O mundo desabava, desaguava, se acabava e nós estávamos ali, envolvidos em um turbilhão de sensações que apenas o silêncio e a respiração podem conduzir. Chovia e não nos molhávamos, mas suávamos; o vento gélido em contraste ao calor de nossas peles; a diferença da tez.
   De Gael, revivo os olhos castanhos e a noite escura. Incrivelmente, não mais me recordo de tantos detalhes... Mas aquela janela aberta, a claridade dos raios, a densidade noturna e a sensibilidade do toque...
   'Closer' recomeçava. Trazia consigo um calafrio demorado que ainda percorre todo meu corpo e adentra mente adentro. Eu sei que tu me lês, Gael, apenas não sei exatamente se ainda me fazes falta. Descobri tantas das tuas mentiras... A desonestidade em enganar com honestidade tantas outras bocas. Eu, apenas mais uma.
   Não que eu me importasse, antes, mas acho que me importo, hoje.
   Foi o meu mundo dentro do teu mundo. Eu dentro do teu blusão. Eu fugindo da minha realidade doentia para me tornar mais doente. Tu me aceitando doente e fugindo da minha doença. Igual um balanço: os pés vão para trás quando o corpo vai para frente. A delícia do passeio sem sair do lugar.
   Sinto pelos momentos de confissão, onde eu te olhava e vomitava para fora de mim o que ainda me dói. Olhar para dentro e deixar me enxergar sem máscaras. Essa honestidade que eu nunca tive comigo, eu tive contigo... Falava para ti, ouvindo a resposta barulhenta do teu sorriso batendo na minha íris azulada, refletindo à luz dos trovões. Os trovões que eu não vi através das minhas pálpebras fechadas. Aquela luz que a noite e as gotas grossas de chuva anotaram profundas em mim.
   De repente, Gael abriu suas asas negras de anjo caído e sumiu. Voltou aos céus. Deus perdoou os seus erros de anjo e me deixou afundada na Terra. A Terra é o inferno real dos pecadores. Aqui, onde fiquei, as minhocas revolvem o solo e cutucam meus pés sujos. Ao mesmo tempo, lagartixas sobem pelas minhas coxas e o sangue escorre para fora de meu ventre. É aqui que o homem inventou o pecado em forma de chá.
   A chave entregue escondida pelo balcão é a única que abre tua porta. As matizes negras da meia-noite. Tuas palavras tão doloridas e tão sinceras qual um sistema de anotações angelicais. Gael jamais seria outra pessoa senão Gael. O anjo com arrependimentos e soluços doloridos.
   Os pedaços que deixei em ti e não sei. Os espinhos das tuas plumas que me espetaram e tu não lembras. O sangue e o sorriso. Os pés para o alto e o balanço para trás. A vida indo para trás e Gael voando para frente.
   Gael nunca mais voltou. Na verdade, talvez tenha, mas eu nunca mais o vi. A não ser na minha memória sem encaixe, sem lembranças, com cheiros, gostos e gozos. As lembranças da janela branca iluminada por nossos sons. Os trovões. E, de repente, teu sorriso. Minha risada. E escuridão. Apenas escuridão. A escuridão da noite que vem sempre e amanhece sem me deixar emocionada mais. O mecanismo do que foi e eu esqueci. E o que eu não esqueci.
   Gael foi embora, petite, há mais de cinco anos. E minha alma segue aprisionada naqueles dias. Hoje eu sinceramente compreendo a falta que minha nudez faz, aquela nudez que se carrega por dentro da intimidade, que só o vazio entre os cacos conhece.

sábado, 17 de novembro de 2018

True Blood

   O sangue é tão lindo! A coloração tão forte escapa, flui, viscoso pela derme. A lâmina que beija a palidez de minha pele desenha o caminho que as gotas rubras nascerão, sujando a roupa e os dedos, adocicando o ambiente com o frescor de seu aroma.
   As lágrimas da minha existência já não brotam de meus olhos: pulsam, vívidas, com a força de quem quer permanecer em pé. É difícil ficar em pé. Poucos entendem e, inexplicavelmente, quase todos querem.
   Talvez me falte coragem, loucura, egoísmo... Talvez haja uma breve chama que mantém qualquer coisa acesa. O certo é que ou o corte afunda, ou os olhos se tornarão vítreos, passeio para os vermes... 
   Secreta e inexplicavelmente, quando fecho as pálpebras, consigo ouvir o som do crânio rompendo, a batida da queda livre de muitos andares. Algo, não sei o quê, me mantém longe da janela. Toda a adrenalina do salto se transforma em um vermelho profundo e, devagar, a angústia passa para que eu permaneça sã.
   A perna resta cada vez mais marcada, bem como a alma estilhaçada aparece em pedaços cada vez menores, - difíceis de encontrar o encaixe certo -, mas os pulmões continuam se enchendo e o coração batendo. Por mais não sei quanto tempo.


terça-feira, 23 de outubro de 2018

Ela erra

   Todos cometemos erros. Mas tornam-se erros apenas após o momento em que outra pessoa chora. Quando outra pessoa sofre... Enquanto a visão turva e a bebida desce, nada dói. Tudo sorri. Gargalha. Estamos ali, mas não estamos. Achamos que não estamos. E engolimos mais. Aceitamos mais. E aí é que nós erramos.
   A ignorância que carrega o corpo se destrói. Destrói ele também. Destrói todos ao redor. Os cacos dela só vão ser cacos quando ela acordar. Agora ainda não. Agora ela é erro. Ela é um gole a mais, uns minutos a mais, um soco a mais. Ela não sabe quem é. Só irá descobrir no dia seguinte, quando ele contar o que aconteceu.
   Ela não merece o que tem. Mas tem. A alegria efêmera foi vomitada no banco do carro junto com a cachaça. Junto com o erro. E depois não lembra. Mas ele lembra. Ele se humilhou por ela, esquecendo do erro, apenas para tentar garantir que ela ficasse. Ele caiu no chão e bateu a cabeça, porque ela empurrou. Ela humilhou. Mas ela não lembra. Ela foi um erro. Ela é um erro. Desde sempre. Para todo mundo. Inclusive para ela mesma.
   Ela erra. Ele sofre. Ele é bom. Ela é desgraça. (...) Todos cometemos erros. Ela coleciona. Envergonha-se. Arrepende-se. E não morre. Sabe Deus o porquê, mas ela não morre.


quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Monocromo

   A pílula é branca. O sabor é doce. Macia ao mastigar. Não machuca ao engolir. Não traz ressaca ao amanhecer. Não me faz adormecer... Um comprimido de emoções que me regula: um mar sem ondas.
   A sensação é de que nada acontece. Nada nunca aconteceu. Ser normal não me faz feliz. Mas também não me faz triste. A monotonia do monocromático. Ou preto, ou branco. Sem cores. Sem escalas de cinza. Ou branco, ou preto.
   A pílula não me agrada. Nunca agradou. É solução, não desejo. Deveria ter sido há mais tempo. Queria não precisar há tanto tempo quanto...
   O sono não vem. Os pensamentos tampouco. A mente limpa, vazia, sem dores. A mente limpa, vazia, sem de fato sentir. A paixão, a fúria, as lágrimas, as gargalhadas... Tudo em uma única expressão: superficial, frívola, insignificante.
   A pílula. Muitos pontos. Muitos silêncios. Nem tantos sorrisos. Nem tanto brilho nos olhos. A mão que treme. A dicotomia de querer sentir e não querer. Sentir. A dor que não vem. A espera agonizante de algo que nunca mais. Aquele algo que não sei bem o quê. Uma agonia diferente: não mais do que pode ou não acontecer, mas de uma insatisfação por entender que ser normal, sem intensidade, sem ser triste ou feliz, não tem graça nenhuma.
   Sinto falta das minhas oscilações. Ninguém mais sente.


segunda-feira, 3 de setembro de 2018

O hipopótamo

   Um hipopótamo mordeu meu braço esquerdo. E enquanto a mucosa nojenta babava meu braço, eu sentia o roçar dos dentes que faziam o sangue jorrar. O pavor era incontestável. O nojo era maior ainda. Eu odeio hipopótamos.
   Já não lembro bem como, mas ele soltou meu braço e a pele mostrou uma cicatriz gigante e craquelada, igual à tela de um smartphone quebrado. Minha pele estava rasgada, mas não sangrava. Era tudo fantástico...

   E o hipopótamo era minha fúria. Era eu exteriorizando minha agressividade. Meu ódio. Era a luta minha comigo mesma. Uma representatividade de todo o asco que tenho da minha pele, do pavor que tenho de quem eu carrego comigo. Uma das minhas tantas personalidades.
   Escondido em águas turvas se revela o maior de todos os assassinos. O aspecto angelical nos desenhos infantis não existe na vida real. É sujo, fétido e perigoso. Um assombro! É meu rosto e minha alma. Pequena e meiga na imaginação, um monstro por dentro.
   Os dentes são a lâmina, o braço é minha perna. O lado esquerdo. Sempre o lado esquerdo. Cicatrizes que são um quebra-cabeça sem continuidade. O sangue que jorra, mas que seca.



   O hipopótamo é minha sexualidade. A vulva que já abraçou tantos membros. A incontrolável vergonha que sangra. A realidade que me engole em sonhos que não quero ter. As minhocas que tecem a costura de seus corpos melados. A ignorância da animalidade. O aspecto selvagem do sexo. O sadismo e o masoquismo. A doença do inconsciente.

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Equilíbrio

   Prometi para mim mesma que jamais escreveria os verdadeiros motivos pelos quais eu choro ao longo do dia, escondida dos olhos dos outros, trancada no banheiro, no canto do chão do quarto, ao lado da máquina de lavar, embaixo da mesa da sala, ... Que não escreveria aqui, porque tu lerias. Porque eu tenho medo de te perder - e me vem uma certeza avassaladora que me diz que isso vai se consumar mais cedo ou mais tarde.
   Muito penso em não demonstrar o que sinto justamente por essa razão. Que, por demonstrar, tu irás se irritar e se afastar. Mas a cada vez que eu não demonstro, é como se eu engolisse toda a fumaça de todos os cigarros que já fumei. Que tu não presenciaste. E vai entalando e entalando. Preenchendo. De repente, a tosse. Tosse, porque preciso respirar. Tosse, porque é o primeiro indicativo de doença. Tusso e choro.
   E eu choro, porque não é fácil. Porque eu não te entendo. Não te conheço. Choro, porque dói esse sentimento de insuficiência que sinto perto de ti. E que me carrega em corda-bamba sem saber se no próximo passo irei cair ou permanecer.


domingo, 12 de agosto de 2018

Alice no país dos espelhos

   O espelho machuca os olhos de Alice. As pupilas vazadas enxergam grossas camadas de dobras, gordura, a pele pendurada, os buracos. O espelho nunca mostrou o que Alice quis. Alice nunca teve a imagem que desejou, mesmo muito tentando.
   Anos de pílulas, vômitos, diarreias... Anos de abstinências e exercícios que nunca funcionaram. Ser como se deseja nunca foi possível. Nunca houve sequer o chamado "breve momento de felicidade"...
   E a sociedade emerge aos gritos incontroláveis ao pé dos ouvidos: a falta de saúde, a exigência de socorro a alguém que não quer ser socorrido.
   Todos os dias a balança mostra números que Alice não quer ver. Números estagnados e presos no corpo inchado e gorduroso que os pés tortos e gélidos sustentam.
   Pour quoi je suis née comme ça?
   Desgraçadas são as que eu não sou: altas, magras e perfeitas. Dedos longos e delicados. Traços corpóreos que desenham a facilidade de ser o que o espelho nunca me mostrará. Beleza.
   Malditos sejam meus dedos gordos que a goela já cansou de engolir; a bunda murcha que coleciona buracos; o umbigo triste agarrado à manta de porcarias que carrego, que sou. Maldita seja a verdade que os espelhos desenham dentro de minhas retinas com tanto deboche todos os dias, todos estes anos, insaciavelmente.


quinta-feira, 5 de julho de 2018

Repetições

   A cama afunda meu corpo para dentro dela. Não há mais como sair. O frio congela meus dedos, meu nariz, minhas pálpebras e meus pensamentos. As pupilas estateladas presas ao teto mudo. Nada diz, nada vê, nada sente. Tudo de novo. Mais uma vez.

A white blank page and a swelling rage.

   Amarras me mantém longe de lâminas e da janela. Tudo ficou vazio. Tudo congelou. Inundou e transbordou. Deixei ir por entre os dedos e não está mais no cheiro dos meus cabelos. Não há mais gosto, nem cheiros ou sequer texturas.
  Há apenas, pendurada na parede branca, a janela de tantos passados. A cor rubra e única do guarda-chuva do casal. De olhos fechado, as gotas gélidas de uma Paris que está tão distante. Por entre as coxas, a pele que lateja a carne lacerada...
   Tudo de novo. Mais uma vez.


terça-feira, 3 de julho de 2018

Quase

   Está tudo estragado, trincado, quebrado. As veias torcidas pela gordura que as entopem. A pele rasgada em inúmeros traços. Coágulos de sangue. Cascas de ferida. Os olhos, que já eram vazados, tornaram-se vítreos. O batimento na boca, o ar que não chega, os membros que adormecem... Tudo morre, menos eu. Tudo já está morto, menos o corpo.
   O corpo continua quente, embora congelado. Ainda há vida dentro da carne e talvez ainda existam alguns sorrisos para serem gastos... Não é que nada mais faça sentido, apenas já não vejo algumas cores. Tenho dificuldades em me erguer e continuar. Não é uma questão de capacidade quando se desiste. Às vezes as pessoas desistem.
   O corpo dói. Sangra. As cicatrizes rompem... E inexplicavelmente essa dor é tão boa! Essa dor que me diz "hey, tu ainda sentes algo!"... E eu odeio sentir.

"Because death is just so full and man so small"



sexta-feira, 1 de junho de 2018

Finalidade

   De repente o corpo todo dói. A cabeça, as mãos, o estômago, a face... Tudo se contrai trazendo uma dor insuportável com sensação de eternidade. As lágrimas rolam e nós só queremos descobrir como fazer parar de doer. Por onde se começa a reconstrução? O estrago é tão grande que não tem mais como ajeitar sem permanecer torto... Será que as pessoas vão entender? Será que, olhando para trás, vão enxergar o que eu passei e o motivo que me leva a estar assim?
   Por que as pessoas têm de entender? Por que elas julgam? É coragem ou loucura? É um instante de determinação ou de medo? O último pulo, o último engolir, a última sensação de liberdade, a última sensação de arrependimento, a última ironia de... a última sensação.

   Tudo o que eu queria já ter realizado e está tão longe de realizar... que não irei realizar. Por que ficar? O que me mantém?
   Todas as decepções, as doenças, os amanheceres em mim, tão difíceis e tão presentes... os pesadelos tão vívidos e nunca distantes. Como encarar? Como fugir? Como ficar? Para que ficar?
   Todos os cacos de porcelana mastigados durante anos e as cicatrizes nunca cicatrizadas que só eu enxergo... Como curar? Como costurar? Como se manter? Para quê?

   De repente paramos de sentir. Parece que tudo já acabou. A dor passou, as lágrimas não descem mais, o corpo inteiro morto. Morto, porém vivo. Ainda respiro e nada fiz. E a cada momento desses, me questiono o que me mantém. O que me mantém? Todas as vezes eu soube responder. Não queria decepcionar alguém, não queria destruir alguém, não queria fazer sofrer, não queria não completar minhas promessas, não queria... não queria de verdade, na realidade. Agora é diferente. Algo me segura e eu não sei por quê. Não me importa a quem posso magoar ou ferir, não me importa se irão me entender ou quem assumirá a culpa. Quem irá chorar. Quem não ficará sabendo. Não me importa. Mas... o que me mantém?


quarta-feira, 16 de maio de 2018

6 Balloons

Texto extraído do filme "6 Balloons" - um original Netflix.



Capítulo 1.
Você está em um cais. Já esteve aqui.
Escolha andar pelo cais.
Perceba o barco. Perceba as nuvens se formando... o vento forte... o mar oscilante. Escolha entrar no barco.
Agora segure-se... e nunca se solte.
[...]
Capítulo 2.
Você está no mesmo barco. Perceba que a água deteriorou o barco. 
Prometa que irá consertá-lo antes de viajar.
[...]
Capítulo 3.
Você voltou. Entra no mesmo barco.
Admita para si que não sabe conduzir esse barco.
Diga para si que é a única pessoa que pode conduzir esse barco. Agora desatraque e reme.
Você está no mesmo barco. Repare no motor. Teste o leme.
Você não pode conduzir... e não pode remar. E pensa que você... pode... se afogar.
[...]
Capítulo 5.
Não há barco. Não há motor. Não há remo.
Admita para si que só há você mesmo... e a água à sua volta.
Está afundando. Está se afogando. Está chegando ao fundo. 
[...]
Capítulo 6.
Há um barco no meio do oceano.
Diga para si que pode conduzir o barco. Mesmo após ele ter virado. Diga para si que ninguém irá notar. 
[...]
Capítulo 7.
Admita para si que você escolheu percorrer o cais. Admita que escolheu entrar no barco, mesmo sabendo que não podia conduzi-lo. Admita que viu a deterioração e não a consertou... que podia ter ficado em terra firme, mas, em vez disso... entrou no barco novamente.
Admita que nunca pediu ajuda, mesmo quando ofereceram.
E agora... liberte-se.
[...]
Capítulo 8.
Estamos no mesmo barco.
Você está no mesmo cais, entrou no mesmo barco. O barco está inundando.
Admita para si.
Perceba as nuvens se formando.
Está se afogando. Está chegando ao fundo.
... sabe conduzir esse barco. Está no mesmo cais.
Está afundando. Está afundando. Está afundando. Está chegando ao fundo. Está se afogando. Está afundando. Está afundando. Está se afogando. Você vai nadar. Está chegando ao fundo.
Você está nadando. Suba. Suba. Respire. Respire. 
[...]
Capítulo 10.
Sempre haverá um barco no fim do cais.
Mas diga a si mesmo que pode escolher se irá ou não embarcar.

sexta-feira, 20 de abril de 2018

Para sempre

   Se tudo na vida fizesse sentido, a lua não se esconderia no breu da noite nos dias que eu sinto saudade, nem eu nadaria em insônias quilométricas nas noites em que desejo sonhar contigo. Se tudo fizesse sentido na vida, nunca teríamos nos conhecido por acaso e eu não te amaria cada dia mais de maneira interminável.
   A fumaça que grita pelos buracos da máquina a vapor é sempre a minha imaginação te desejando cada vez mais perto. Os trilhos queimando o calor do encontro de nossas peles (brancas, branquinhas) igual à neve que cai do lado de fora da janela no outro lado do hemisfério. As pálpebras fechadas escondendo as cores da tua íris na imaginação tão sólida...
   Aqui estou eu, mil quilômetros de distância, sorrindo para os buracos da veneziana, te imaginando sorrindo também. As imperfeições que transformam na perfeição. Eu te amo desde a primeira vez que te vi. Nada vai mudar isso. Ninguém vai mudar isso.


domingo, 25 de março de 2018

Cinzas

   Eu respeito quem se ama. Respeito aqueles que conseguem olhar no espelho a própria imagem refletida e enxergar qualidades, beleza além da textura da pele, apaixonar-se por todas suas próprias atitudes. Respeito quem vai além das cicatrizes para recomeçar em todos os amanheceres.
   Honestamente, eu respeito com uma mescla de inveja. Eu já fui, mas eu não era. Alva. Eu me amava enquanto me destruía e agora que sou cinzas espalhadas já não compreendo como podia sentir. Não recordo com carinho dos corpos por onde me sujei, nem das lembranças que gostava de manter. Desconhecidos que nada significaram e contabilizaram números que nem sei mais contar. A pureza da minha tez eternamente manchada pela sujeira que só eu vejo. Todos os dias. O que eu fui. O inchaço do meu corpo advindo das minhas falhas. Morais. Físicas. Estruturais.
   E eu, com todas as minhas (im)perfeições superficiais, me deparo com essa qualquer que mantém um discurso tão falso quanto o amor próprio que insiste em mastigar nas colheradas de purpurina que usa para construir um mundo encantado de unicórnios e sereias. Este ser humano que finge estar satisfeita com traços corpóreos. Ninguém se importa com o que tu pensa. Plenitude vai além dos mantras que nos mantém a imaginação doentia.
   Aposto que tu, menina, se olha no espelho todas as manhãs e se vê grande e crescida, mas chora enquanto banha-se por não encontrar dentro de si o amor pela imagem e linguagem que constrói a espalha, porque a autoafirmação não nasce em espelhos, mas cresce do solo que queimou e deixou de ser fértil. Tu, rapariga, só terá capacidade de entender quando ouvir o som que vem abaixo dos teus pés tortos. A porcelana do teu cerne pode ser mantida por orações, mas a feiura de nossas almas nunca estarão limpas após um banho de chuva.


sábado, 24 de março de 2018

A volta de Gael

   Fazia tempo que Gael não se mostrava para Alice. Asas brancas e toda a pureza que uma alma bondosa carrega. Gael decidiu aparecer em sonhos e mostrar à menina a podridão do mundo, os males da carne, as dores que adormecem e pinicam a pele. A sujeira que não sai. Ele apareceu, mostrou, sorriu e desapareceu.
   Alice, sem nada compreender, ficou procurando o buraco para cair, mas já não o encontra. Não são mais apenas os sonhos. Piscar machuca a íris e as pálpebras carregam muito mais lágrimas do que conseguem suportar para se manterem erguidas.
   Acontece que a ingenuidade de Gael não conhece o mundo da mesma forma que Alice conhece. Cada um sofre da maneira que consegue pelos motivos que cada alma mantém. Um dia, talvez, Gael irá embora para sempre e Alice estará caindo constantemente no buraco que a levará ao país das maravilhas. Sem volta. Os sonhos irão se mesclar à realidade e tudo arderá muito mais.
   Ninguém nunca disse que ser anjo era bom. Ninguém nunca explicou que ser humano corrói. Ninguém jamais irá costurar a carne rasgada e limpar o pus que brota fétido da ferida do passado.


sexta-feira, 23 de março de 2018

As verdadeiras cores

   No meio de uma eterna fotografia em preto e branco, brota o meu sorriso trazendo tons doces de um passado que era colorido. Este meu sorrir ainda é teu. Sutilmente, as gotas douradas do sol vão pintando o teu rosto na minha memória e a saudade aperta a garganta. Lágrimas escorrem desenhando aquarelas em meu rosto e eu acho que está tudo bem.
   Respirar ficou mais fácil, de repente. Meu travesseiro se transforma em teu peito e eu sonho com uma pequena família: uma casa simples, patinhas felinas e pés nus de crianças lindas. Tudo é colorido e faz sentido... Mas eu abro os olhos e os tons de cinza reaparecem, porque a realidade não é a mesma de quando eu fecho os olhos.
   Ser feliz às vezes dói, às vezes está longe, às vezes é diferente do que se imagina. Contudo, o crispar leve dos lábios moldando a felicidade ainda existe e eu não vou desistir disso. Passa dia, passa ano e eu sou a tua mulher.


domingo, 25 de fevereiro de 2018

Devil's tears

   Enquanto se embriagam os corpos, estou deitada só e distante. A vida é maravilhosa para todos, mas eu sigo me enganando com imagens que se repetem em minha memória, por mais que eu tente fortemente fugir delas. Chove pelas paredes do meu quarto e inunda Paris no meu quadro. Não há ninguém nas ruas, apenas eu deitada na cama, sozinha e com um frio inexplicável em meio a um calor de verão.
   Enquanto as bocas se rebolam, a consciência pesa. A verdade nunca será dita e nunca será (re)construída. Os sonhos das noites não dormidas desabam pelos meus olhos e o guarda-chuva vermelho machuca minha alma. Os sorrisos não são mais os mesmos. As cicatrizes ainda sangram, mesmo fechadas.
   Enquanto o mundo se recheia de mentiras, eu sigo presa a esta cama sem inspiração para levantar. Come with me and we'll make many storms. E eu sigo aqui... Troveja dentro de mim, mas o grito não sai. O desespero expande ainda que eu continue do mesmo tamanho e com o peso cada vez menor.

O que estamos fazendo?


quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Noite e estrelas

   A noite vem, escura e iluminada, devastando com a Lua graúda e estrelas pregadas em uma imensidão negra que esmaga tudo o que eu poderia sentir de ruim. As coisas que doem se desfazem igual às dunas de areia com a brisa que entra pela minha janela e mordisca minhas bochechas.Têm coisas que simplesmente são incompreensíveis, mas está tudo bem. Realmente, está tudo bem!
   Nada está na ordem correta, nem no lugar que deveria estar, mas eu nem ligo. Talvez tudo se ajeite e cada vez mais eu acredito nisso.
   As estrelas cintilam tão lindas e eu me sinto tão pequena frente à imensidão que é essa noite. Quando eu deitar, quero ter os sonhos mais lindos e imaginar aquele mundo onde nada mais importa a não ser.
   O tempo é nosso e, devagar, tudo vai ficar lindo. Eu vou te amar tanto quanto já amo e nada vai ser empecilho. Nada estará no nosso caminho. O trem vai andar na direção que nós quisermos, sem estação final.


quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Um pouco sobre mim

   Beatrice tinha sapatilhas vermelhas e vivia resmungando do quanto (e como) aquele lugar não era o lugar dela. "Queria voltar ao Kansas", dizia eu à ela, fazendo-a rir. Não sei se ela entendia corretamente a brincadeira, mas após seu desligamento da minha vida (um ano, exatamente), comprei eu um par de sapatilhas vermelhas para mim.
   Conto isto, pois percebi que todas as fotografias que fiz dos meus pés nestes últimos tantos anos, nenhuma vez emoldurei as ditas sapatilhas. Elas eram de camursa e acabei as arrebentando certa vez que inventei de andar de longboard.
   Pois bem, o que ninguém sabe é que eu as calçava com grande frequência e, quando estava triste, batia três vezes os calcanhares fazendo algum desejo para que as coisas melhorassem. 
   Do momento em que as vesti na loja ao momento que as descartei, elas percorreram comigo histórias que só eu sei: histórias que me arrependo tanto , lugares que se tornaram tortuosamente cicatrizes do meu âmago, jardins de paisagens tão lindas quanto o Kansas...
   Faz dois anos que o fantasma de Dorothy deixou de estar em minha companhia... e, inexplicavelmente, eu sinto falta da sensação completamente imaginária de segurança de poder "voltar para o meu lar" ao bater dos calcanhares. Nunca mais comprei sapatilhas vermelhas.


terça-feira, 9 de janeiro de 2018

A hora não é essa

   Não sou eu quem precisa te dizer que a hora não é essa. Não vai ser hoje ou amanhã. Que vai demorar anos ou que pode não chegar. A hora não é essa! As coisas acontecem quando tem que ser. Pode ser que já tenha acontecido e a gente não saiba, mas agora a trilha é outra. A música é outra. O ar é outro.
   Essa cidade toda maravilhosa, cheia de prédios, zumbis e falta de amor... eu já não gosto mais dela. Não é mais o meu lugar. Talvez nunca tenha sido a não ser na minha imaginação. Quem sabe algum dia eu volte a me sentir em casa em meio aos gritos dos vendedores e pessoas que se esbarram maleducadamente, mas a hora não é essa. Não é agora.
   As coisas que me ardem o peito não pararam de arder. Quiçá algum dia pararão. Se algum dia cessarem, aí será a hora. Cada um tem o seu tempo e aprendi a não atropelar as coisas que sinto por medo de perder o trem. Sempre vem outro, na hora que tiver que vir. A hora não é essa.
   A hora pode ser daqui dez anos (eu jamais saberia). Mas não subestime o que guardo adormecido dentro de mim, nem maldiga os meus esforços diários para engolir todo o mal que me fizeram / que eu me fiz. Hoje, eu busco tranquilidade e a minha paz está presente. Esta é a minha hora: a hora de eu ser minha, de repugnar/expulsar/exorcizar tudo o que não quero em mim. Eu quero a mim e essa é a hora. Hoje. Agora.