sexta-feira, 29 de julho de 2016

Moça, sai da sacada

Passam os dias, os meses e os anos... e ela continua se sentindo cada vez mais afundada na criação que é menina Alice. A menina que esconde de si as facas da casa para que elas não estejam próximas quando. Que chora quando ninguém está vendo, por não querer explicar o quanto está cansada de fingir que gosta de si própria.
Em rodas de amigos, quando surge o assunto, estampa em seu rosto o sorriso amarelo costumeiro de quem finge que concorda. Ninguém entende. "Por que a pessoa faz isso consigo? Como pode? Eu não entendo por que disso. Que egoísmo! Ela não pensou na família antes de?" Ninguém entende.
A parte mais difícil talvez seja fingir concordar... enquanto, na realidade, a resposta de todos os pontos de interrogação estejam claros em sua frente, na ponta de sua língua, no último impulso antes de.
Será que existe como deixar de entender? Agora que Alice já conhece a fenda, existe maneira de preenchê-la definitivamente? É tão injusto as pessoas não sentirem. Talvez quem sinta seja mesmo diferente, seja "doente-louco-incurável".
Acontece que quanto mais Alice finge, mais cansada de si ela fica. Quanto mais esfrega, mais encardida.



Moço, ninguém é de ferro
Somos programados pra cair.

domingo, 24 de julho de 2016

Cass

No princípio do anoitecer, pode-se ouvir os gritos de Cass. Ninguém nunca soube exatamente o sentimento que carregava seu timbre após cada lambida do couro da cinta em seu dorso. Gritava de medo, de pavor, mordia os dedos, engolia o choro... E adorava! Queria mais! "A dor é boa".


Das marcas - várias - que batizavam o corpo de Cass, só ela sabia da procedência. Apenas ela poderia indicar quem foram os responsáveis por cada talho e explicar como pôde autorizar que fizessem isso nela. A verdade é que, muito tempo passou desde...
Então que, por alguns anos, Cass saiu da cidade. Deixou-se na imaginação de Buk e nunca mais voltou. Não para ele. Vestes passaram a esconder suas cicatrizes e aceitou a mudança em sua aparência, em sua postura. Algumas pessoas que passaram por ali jamais deixariam de existir, não importando a força que ela mesma fazia para fingir que nunca as conhecera.
Bem verdade que, tanto tempo se passou e Cass conheceu um homem. Um homem proibido, com cicatrizes e desenhos pela pele, com algo de misterioso, mas que a menina nunca quis ousar em desfazer o laço do embrulho para descobrir o real conteúdo. Cass voltou à cidade - e certamente já não era (ou não se sentia mais... ou já não davam-lhe o cargo de) "a mulher mais bonita da cidade". Bem dizer, banhou-se na lama de suas memórias e aceitou que aquelas mãos - tão masculinas, fortes e firmes - lhe percorressem cada arrepio do corpo.
Finalmente, passado tanto tempo, não se sentiu suja e aceitou sentir o que sempre tentara sentir. Continuava se machucando e talvez necessitasse disso, inexplicavelmente, para entender que ainda estava viva. Era assim: depois da surra e dos gritos, ele lhe abraçava e lhe dava carinho (quase como um pedido de desculpas) para, segundos depois, reconstruir a violência do sexo, mascar o desejo da carne.

"Tinha um pouco de cerveja na geladeira e ficamos lá sentados, conversando. E só então percebi que estava diante de uma criatura cheia de delicadeza e carinho. Que se traía sem se dar conta." - BUKOWSKI, Charles.

Cass voltou para a cidade e já nem queria saber quem tinha sido Buk. Estava ocupada demais recebendo o que sempre buscou ter: doses de disciplina.