quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Dylan

   Tudo começou quando eu, pequena, sentava no carpete e ficava balançando os dedinhos dos pés descalços ouvindo aquela voz levemente rouca e um pouco fanha de um menino e seu violão. "Hey, Mr. Tambourine Man" ele dizia. E eu, que só sabia falar francês, não entendia as palavras dele, mas prestava atenção até levantar e dançar dobrando os joelhinhos, depois deitava no carpete, fechava os olhos e ficava imaginando o que aquele moço queria me dizer.
   Os anos passaram e surgiram Os Famosos e Os Duendes da Morte para me ensinar que a "Jingle-Jangle morning" teria que ser enfrentada com um silêncio que só o sopro de sua gaita seria capaz de me fazer abrir os olhos e recomeçar a desvendar o mundo com tanto cuidado até entender que "it's all over now, baby blue".
   Foi quando eu deixei de cuidar de mim que veio Ravel em minha vida para cantar "Ballad of a Thin Man" numa terça-feira de sol, me fazendo perceber que eu tento bastante, mas eu não entendo; que algo está acontecendo aqui e eu não sei o que é. "For the times, they are a-changing..."
   Sempre que algum dos meus vagões cai dos trilhos, é aquela mesma voz e violão que vai me fazer chorar e recompor, para que eu possa balançar os dedinhos dos pés e abrir os olhos para o mundo com a mesma determinação, mascando o medo com a parte esquerda do maxilar, para que tudo, ao final, venha me dizer que "the answer is blowing in the wind".


domingo, 10 de fevereiro de 2019

A porta

   A porta do meu vagão não abriu quando o trem parou. Os guardas faziam sinal para que o embarque-desembarque ocorresse através da porta ao lado, mas eram tantas pessoas e tanta bagunça... e eu sou tão pequena e tão insignificante,.. que não consegui me mexer.
   Entre cabeças e através dos vidros sujos e ensebados, eu te vi. Longe. Ocupado. Sorrindo.
   Lá fora, um mundo todo diferente por entre tantos rostos iguais. Tantos mundos em cada semblante, enquanto que a estação era uma só. Aquela exclusivamente. E a porta não abriu.

   Só depois que eu desci, na estação errada, foi que percebi que  o próprio trem é que mantinha teu sorriso ocupado, independente da porta trancada. Ainda era aquela estação e ainda estava ali.


quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Hilário

   Burlesco! Regurgitantemente cômico. O hilário mesmo foi que, por segundos, eu achei que o trem fosse parar nesta estação. Ah! O doce engano que liberta a alma!

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Fábula

   A memória, a voz dentro da minha cabeça e minha sombra conversam entre si.
   - Lembra daquele dia que... - diz a memória.
   - Pára! Não quero lembrar disso, eu me arrependo! - diz a voz.
   - Não interessa. Eu sei. Eu estava lá. - diz a sombra.

   Os remorsos beijam minha inconsciência e engolem um gole de whiskey a mais. Sempre um a mais, porque nem depois que os lábios enformigam é hora de parar. Nem depois que o sono vem é hora de parar. Nem depois que o vômito explode pelo nariz e baba a roupa é hora de parar.
   Não há bebida ou o que for que conserte a memória. Existe o Alzheimer, mas esse demora muito para chegar... e é muito triste para os que estão ao redor.
   É muito triste para os outros que eu esteja doente, mas é muito triste para mim que eu tenha uma memória, uma voz e uma sombra. As três dançam ciranda ao redor de mim vinte e quatro horas por dia. As três me infernizam implorando um corte a mais, um gole a mais, um rasgo a mais.
   O corpo dilacera e tudo é lindo para elas.

   - Lembra como era? - diz a memória.
   - Já não consigo discernir se era bom ou não.. vai ver era, né? - diz a voz.
   - Acho que o corpo reclamava... - diz a sombra.

   E assim, todos os dias, eu levanto e deito. Todos os dias carrego culpas do que fui, do que fiz, do que odeio em mim. Todos os dias a memória, a voz e a sombra me diz que eu não posso ser, nunca mais, o que eu sempre quis ser.