domingo, 13 de janeiro de 2019

As nuvens, a certeza e a partida

"[...] Quando a gente menos esperava, as palavras aconteciam. As nuvens embaçaram o rosto dele por trás dos meus olhos, mas eu ainda conseguia enxergar a distância que aquelas feridas percorreram para voltar ao lugar de onde não conseguiu partir. As deformidades acumulando clínicas. As alegrias dentro de cada comprimido. Nossos corpos balançavam a mesma música e talvez nós dois também dançássemos sobre a motocicleta que agora corria sobre a rua deixando a cidade para trás. O asfalto debaixo dos nossos pés, e tudo era tão depressa. A cidade perdia as casas, as árvores, as pedras. Um pouco mais de asfalto a cada ano. Os cachorros latiam e, antes que eles acordassem, já estávamos longe dos seus dentes. As nuvens carregadas de gelo pesavam sobre nós e talvez fôssemos destruídos antes mesmo de chegar às plantações no limite da área urbana. O ronco forte do motor esquentava as minhas pernas e o inverno era uma estação distante dos nossos corpos voando sobre a motocicleta. O vento gelado da noite acordava as lágrimas guardadas e eu chorava sem que ninguém notasse. Longe de mim mesmo eu chorava as distâncias que nunca teria vencido se ele não tivesse me levado. Por mais que corrêssemos, já estávamos longe. Por mais que sumíssemos em estradas desertas dentro da escuridão, nunca estaríamos longe o bastante. Nunca seria o suficiente para esquecer. Para que nos esquecessem. É preciso certeza para partir. É preciso não ter, para onde chegar."

[CANEPPELE, Ismael. Os famosos e os duendes da morte. São Paulo: Iluminuras, 2010, p. 76]


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