domingo, 12 de agosto de 2018

Alice no país dos espelhos

   O espelho machuca os olhos de Alice. As pupilas vazadas enxergam grossas camadas de dobras, gordura, a pele pendurada, os buracos. O espelho nunca mostrou o que Alice quis. Alice nunca teve a imagem que desejou, mesmo muito tentando.
   Anos de pílulas, vômitos, diarreias... Anos de abstinências e exercícios que nunca funcionaram. Ser como se deseja nunca foi possível. Nunca houve sequer o chamado "breve momento de felicidade"...
   E a sociedade emerge aos gritos incontroláveis ao pé dos ouvidos: a falta de saúde, a exigência de socorro a alguém que não quer ser socorrido.
   Todos os dias a balança mostra números que Alice não quer ver. Números estagnados e presos no corpo inchado e gorduroso que os pés tortos e gélidos sustentam.
   Pour quoi je suis née comme ça?
   Desgraçadas são as que eu não sou: altas, magras e perfeitas. Dedos longos e delicados. Traços corpóreos que desenham a facilidade de ser o que o espelho nunca me mostrará. Beleza.
   Malditos sejam meus dedos gordos que a goela já cansou de engolir; a bunda murcha que coleciona buracos; o umbigo triste agarrado à manta de porcarias que carrego, que sou. Maldita seja a verdade que os espelhos desenham dentro de minhas retinas com tanto deboche todos os dias, todos estes anos, insaciavelmente.


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