domingo, 27 de março de 2016

Al-furriâ

De repente, os chicotes pararam de cantar agudo na carne da menina. Pararam. Sem ela perceber. Por mais que, imaginariamente, ela ainda sinta os estalidos, e as feridas sigam abertas brotando pus e sangue, a alforria chegou. Chegou sem ela se dar por conta e, finalmente, a menina chorou por estar livre dos grilhões em que se metera. Chorou também pelas farpas que tentara arrancar e não alcançou. Sentiu com a ponta dos dedos todos os sulcos que a pele rasgada formou, igual cordilheira, no íntimo da sua alma.
É machucando o couro que ele fica rijo, forçando o limite das articulações que elas se tornam maleáveis, reiterando os machucados que se aprende que eles já nem doem tanto assim... Mas, subitamente, a menina percebeu que estava no chão. Que depois de tanto ser jogada para cima e cair, as quedas cederam o solo e já não conseguia mais olhar para o que era bonito, se é que existira, algum dia, algo que fosse. O ato de respirar tornara-se sistemático e cada vez mais escasso. A menina perdera a fala, mas a sua cabeça gritava incessantemente para que parasse, para que não tentasse mais, que já era hora de. Que não.



O Sol, que cegava os olhos e maltratava a pele da menina, se escondeu atrás das asas daquele anjo que, por muitas e muitas vezes, voltava para lhe mostrar que a esperança é tão verde, viva e brilhante quanto os olhos dele. Dessa última vez, foram as próprias asas deste anjo que envolveram a criança e a carregou para um lugar seguro, com sombras e frescor, para que todas as chagas sumissem. O sangue foi enxugado pela terra para que, dali, pudesse brotar o único sentimento de proteção que já sentira, um manto incondicional de paz e descanso. Todos os dias, a menina acorda e percebe que as cicatrizes seguem ali (e ali permanecerão), mas que estão fechando e já não há mal cheiro, podridão, asquerosidade. Incrivelmente, ao que tudo indica, a menina ainda vai conseguir se olhar no reflexo do rio e, com vestes brancas, vai se sentir linda e plena, pois o anjo nunca a abandonou.

Um comentário: