terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Qualquer coisa

Quando me pediram para, naquela folha em branco, escrever "qualquer coisa" menos as palavras "qualquer coisa", estive em uma situação de pré-pânico. Mentira. Mas pense você, leitor, se sua vida dependesse de "qualquer coisa" que você TEM DE escrever em uma folha em branco.
Qualquer coisa! Pode ser uma palavra, uma frase, um texto, um trecho de uma música, a música inteira, várias músicas, uma sinfonia ou o intervalo da respiração! E aquilo ali, aquele vazio significativo traduzido em letras, se transformaria em uma avaliação psiquiátrica que jamais retornaria com o mesmo significado de que foi enviado.

Lembrei de uma estória que a professora leu para a classe, quando eu tinha uns 8 ou 10 anos:
Era uma vez um menino mentiroso. E a mãe do menino quis mostrar pra ele que mentiras machucavam. Pediu para ele que, toda vez que ele contasse uma mentira, por um período determinado de tempo, que enfiasse um prego na madeira da cerca da casa. E assim fez. Terminado o tempo, a mãe pediu para que ele passasse o mesmo tempo evitando de contar mentiras e, quando assim o fizesse, que retirasse um prego da cerca. Extinto o tempo, o menino estava contente que havia retirado todos os pregos. Foi então que a mãe o levou à cerca e mostrou os buracos na madeira e disse-lhe: "Vês? Perfuraste a madeira com tuas mentiras. Da mesma forma, os buracos que ali estão encontram-se no coração das pessoas a quem tu endereças as calúnias."

Na imensidão infinita de possibilidades, eu escrevi a palavra que mais amo, que mais me define, que está estampada na minha carne de tantas formas, na minha alma, na dos outros: cicatriz.


Todos temos cicatrizes, mesmo que não sejam físicas. Atrás da retina, corre a cor do remendo de algo que quebrou. Têm aqueles que conseguem encarar e dominar a dor - sim, pois cicatrizar é processo lento e dói, sangrando e infeccionando algumas tantas vezes durante o processo - e outros que procuram fugas - em comida, drogas, pessoas, vícios, estudos, trabalho. Fuga de respirar fundo e encarar. Encarar as culpas, os motivos pelo qual há uma marca tão funda abanando para o futuro que vem a fim de trazer mais das mesmas.
As pessoas resvalam e se cortam - as mãos, os punhos, as coxas... E aquele sangue limpo, inocente, líquido, leve, brota devagar, sem perceber. E escorre. Escorre e suja. Às vezes seca, outras não - segue como o mar, incansável, a extinguir-se em gotas tristes e rubras, mesclando-se aos pés que tentam erguer.
Das físicas, eu tenho algumas e lindas. Cada uma delas me traz uma lembrança diferente. Um gosto no palato, um aroma específico, uma luz mais ou menos brilhante e independente da abertura das pálpebras. Das emocionais, sinto que coleciono também as cicatrizes que não são minhas. Não me pertencem. Mas estão ali! Surgem em sonhos, em pensamentos. Surgem, principalmente, nos momentos de calmaria, como que um aviso para dizer "Hey, lembre o PORQUÊ de ainda estar aqui, de pé, erguida, sorrindo!". Particularmente, é NESSE momento que tenho medo. De falhar nas minhas ideologias, de romper a carne que, a muito custo, fechou com fragilidade há pouco tempo. Blábláblá.

Eu escolhi uma palavra. E só eu sei o quanto ela me define e está presente comigo no meu dia-a-dia. Não posso dizer se o meu "qualquer coisa" é um qualquer coisa correto, mas é o que eu amo ter, apesar de.
E você, que "qualquer coisa" escolheria?

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