quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

O mendigo

Hoje, prometi para mim mesma que eu não escreveria mais coisas tristes aqui. Preciso reorganizar os móveis dentro de mim e de nada adianta eu trocar os vasos de flores de lugar se as janelas permanecem fechadas. Decidi que vou me ajudar com tudo o que consigo. Se eu consigo suportar todas as coisas que me corróem nos outros, eu posso conseguir me suportar e me erguer. As pernas são minhas. Sempre foram.
Por essa semana eu fiquei muito pensativa na efemeridade das coisas. (Efemeridade me lembra os mesopotâmios, escrita cuneiforme, etc.). Eu viajo todos os dias. E sempre que o ônibus começa a andar mais ligeiro ou faz uma curva mais fechada, eu respiro fundo, porque eu vejo o acidente acontecendo: o ônibus tombando, batendo, pessoas machucadas, etc. Vejo em um micro surto de pânico e, ainda bem, nunca aconteceu. Fico absurdamente aliviada que nunca tenha acontecido, porque, por mais que eu pense bobagens às vezes, eu quero tanto me ver realizando os planos que a vida me fez confeccionar.
Prometi, então, que não vou escrever mais coisas tristes aqui. Todavia, quero deixar estabelecido que talvez venham a acontecer alguns resvalos (igual aquele cigarro que ex-fumantes deixam queimar de madrugada, abaixados atrás do tanque, escondidos de si mesmos - visto que não há ninguém em casa). Eu não posso reclamar que não vejo o Sol se permaneço com os olhos vendados. E tenho certeza que, para os meus olhos vazados, a medicina há de conferir algum colírio que melhore essa situação.

(...)

Pensando na efemeridade das coisas, eu fiquei pensando como as pessoas vão se lembrar de mim. Eu sempre escondi meu nome. Meu rosto. Eu sempre fui máscaras...
Então, tirei um dia inteiro para me stalkear na internet. Está lá, para todo mundo ver, um artigo que publiquei sobre a História da Constituição Estadual do Rio Grande do Sul; está lá, para todo mundo ver, qual o meu trabalho; que eu já fui convocada para participar de Tribunal do Juri; que eu já passei em uma Universidade Federal; que eu declamei uma poesia em cima de uma cadeira; que eu assinei uma petição online pedindo Guns N'Roses no Brasil (e me senti uma pseudo-analfabeta com a minha ortografia da época). Enfim... Tantas outras bobagens. (...) Mas ninguém sabe que eu fui a Flocon de Neige de alguém. Que meu nome não é Alice. Que eu já fui Cass, sem nunca querer ter sido. Ninguém sabe por que NoFX tem tanto significado pra mim. Qual meu posicionamento político. Qual meu escritor favorito. Quem eu sou. O que eu quero que o mundo saiba de mim, que o mundo tenha de mim.
Essa superproteção que eu mesma me confiro, onde nem mesmo meus mais próximos podem responder esse mundo de informações que eu guardo só para mim.

(...)

Hoje, eu prometi para mim mesma que não escreverei mais coisas tristes aqui pelo simples motivo de que, hoje, um mendigo parou o meu andar apressado na rua para me pedir um cigarro. E eu dei o meu cigarro e mais o resto da minha carteira. Ele precisava mais do que eu. Ele tinha ataduras brancas nos pulsos. Ele precisava mais do que eu. Ele me agradeceu com muito carinho, quase sem acreditar a "bondade" que eu lhe fazia. Perguntou-me:
- Tu é casada, mocinha?
- Sou. (menti - por que eu menti para o mendigo?)
- Eu sou viúvo - ele me disse. - Que idade tu tem?
- Tenho 23 anos, sr.!
- Ah, mocinha! Não me chama de "senhor"! Sabe, tu tem a idade da minha filha. E eu só posso te dizer uma coisa: eu talvez não tenha sido uma pessoa boa pra minha família, mas tu pode ser para a tua. Não erra como eu errei, tá?
(E a partir dali, eu parei de ouvir o que ele falava. Cuidei que as pessoas que passavam por mim, e percebiam que ele falava comigo, riam com cara de pena e um pouco de nojo. Depois, percebi que ele tinha os dentes sujos e os olhos verdes. A pele tostada pelo Sol.)
- Tu é uma menina muito legal, mocinha! Eu te desejo SUCESSO! - terminou, falando.
Foi um soco no estômago.
- Obrigada! - respondi.
Quando dei as costas para ir embora, ele me chamou de novo para perguntar:
- Posso saber teu nome?
- Meu nome é Ana! E o seu?
- Sid! Sidnei!
Sorri.
- Tudo de bom para ti, Aninha!

Se a vida era ruim e injusta com ele, eu não sei. Mas ele tinha aquelas faixas nos pulsos que eu não queria que ali estivessem. E ele tinha os olhos verdes mais brilhantes que qualquer pessoa poderia ter. E, se ele, que nada sabe de mim, me desejou SUCESSO, por qual motivo eu não devo lutar por isso? Pelo MEU sucesso?
Eu posso andar sozinha. Eu tenho as minhas pernas.
(E o meu sorriso é muito bonito.)

Um comentário:

  1. Contemple-se, Ana.
    Não espere que alguém faça isso por você.
    O mundo saber de nós não é nada perante o que sabemos sobre nós.
    Um beijo.

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