sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

O Sétimo Selo


   Às vezes, Gael aparece em minha memória. As memórias não estão tão apagadas quanto deveriam (ou como gostaria que estivessem, talvez...). A verdade é que, sempre que Gael reaparece, ele vira palavras e revira as folhas das árvores com a ventania iluminada pelos trovões daquela noite de chuva.
   Chovia. O mundo desabava, desaguava, se acabava e nós estávamos ali, envolvidos em um turbilhão de sensações que apenas o silêncio e a respiração podem conduzir. Chovia e não nos molhávamos, mas suávamos; o vento gélido em contraste ao calor de nossas peles; a diferença da tez.
   De Gael, revivo os olhos castanhos e a noite escura. Incrivelmente, não mais me recordo de tantos detalhes... Mas aquela janela aberta, a claridade dos raios, a densidade noturna e a sensibilidade do toque...
   'Closer' recomeçava. Trazia consigo um calafrio demorado que ainda percorre todo meu corpo e adentra mente adentro. Eu sei que tu me lês, Gael, apenas não sei exatamente se ainda me fazes falta. Descobri tantas das tuas mentiras... A desonestidade em enganar com honestidade tantas outras bocas. Eu, apenas mais uma.
   Não que eu me importasse, antes, mas acho que me importo, hoje.
   Foi o meu mundo dentro do teu mundo. Eu dentro do teu blusão. Eu fugindo da minha realidade doentia para me tornar mais doente. Tu me aceitando doente e fugindo da minha doença. Igual um balanço: os pés vão para trás quando o corpo vai para frente. A delícia do passeio sem sair do lugar.
   Sinto pelos momentos de confissão, onde eu te olhava e vomitava para fora de mim o que ainda me dói. Olhar para dentro e deixar me enxergar sem máscaras. Essa honestidade que eu nunca tive comigo, eu tive contigo... Falava para ti, ouvindo a resposta barulhenta do teu sorriso batendo na minha íris azulada, refletindo à luz dos trovões. Os trovões que eu não vi através das minhas pálpebras fechadas. Aquela luz que a noite e as gotas grossas de chuva anotaram profundas em mim.
   De repente, Gael abriu suas asas negras de anjo caído e sumiu. Voltou aos céus. Deus perdoou os seus erros de anjo e me deixou afundada na Terra. A Terra é o inferno real dos pecadores. Aqui, onde fiquei, as minhocas revolvem o solo e cutucam meus pés sujos. Ao mesmo tempo, lagartixas sobem pelas minhas coxas e o sangue escorre para fora de meu ventre. É aqui que o homem inventou o pecado em forma de chá.
   A chave entregue escondida pelo balcão é a única que abre tua porta. As matizes negras da meia-noite. Tuas palavras tão doloridas e tão sinceras qual um sistema de anotações angelicais. Gael jamais seria outra pessoa senão Gael. O anjo com arrependimentos e soluços doloridos.
   Os pedaços que deixei em ti e não sei. Os espinhos das tuas plumas que me espetaram e tu não lembras. O sangue e o sorriso. Os pés para o alto e o balanço para trás. A vida indo para trás e Gael voando para frente.
   Gael nunca mais voltou. Na verdade, talvez tenha, mas eu nunca mais o vi. A não ser na minha memória sem encaixe, sem lembranças, com cheiros, gostos e gozos. As lembranças da janela branca iluminada por nossos sons. Os trovões. E, de repente, teu sorriso. Minha risada. E escuridão. Apenas escuridão. A escuridão da noite que vem sempre e amanhece sem me deixar emocionada mais. O mecanismo do que foi e eu esqueci. E o que eu não esqueci.
   Gael foi embora, petite, há mais de cinco anos. E minha alma segue aprisionada naqueles dias. Hoje eu sinceramente compreendo a falta que minha nudez faz, aquela nudez que se carrega por dentro da intimidade, que só o vazio entre os cacos conhece.

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