domingo, 24 de julho de 2016

Cass

No princípio do anoitecer, pode-se ouvir os gritos de Cass. Ninguém nunca soube exatamente o sentimento que carregava seu timbre após cada lambida do couro da cinta em seu dorso. Gritava de medo, de pavor, mordia os dedos, engolia o choro... E adorava! Queria mais! "A dor é boa".


Das marcas - várias - que batizavam o corpo de Cass, só ela sabia da procedência. Apenas ela poderia indicar quem foram os responsáveis por cada talho e explicar como pôde autorizar que fizessem isso nela. A verdade é que, muito tempo passou desde...
Então que, por alguns anos, Cass saiu da cidade. Deixou-se na imaginação de Buk e nunca mais voltou. Não para ele. Vestes passaram a esconder suas cicatrizes e aceitou a mudança em sua aparência, em sua postura. Algumas pessoas que passaram por ali jamais deixariam de existir, não importando a força que ela mesma fazia para fingir que nunca as conhecera.
Bem verdade que, tanto tempo se passou e Cass conheceu um homem. Um homem proibido, com cicatrizes e desenhos pela pele, com algo de misterioso, mas que a menina nunca quis ousar em desfazer o laço do embrulho para descobrir o real conteúdo. Cass voltou à cidade - e certamente já não era (ou não se sentia mais... ou já não davam-lhe o cargo de) "a mulher mais bonita da cidade". Bem dizer, banhou-se na lama de suas memórias e aceitou que aquelas mãos - tão masculinas, fortes e firmes - lhe percorressem cada arrepio do corpo.
Finalmente, passado tanto tempo, não se sentiu suja e aceitou sentir o que sempre tentara sentir. Continuava se machucando e talvez necessitasse disso, inexplicavelmente, para entender que ainda estava viva. Era assim: depois da surra e dos gritos, ele lhe abraçava e lhe dava carinho (quase como um pedido de desculpas) para, segundos depois, reconstruir a violência do sexo, mascar o desejo da carne.

"Tinha um pouco de cerveja na geladeira e ficamos lá sentados, conversando. E só então percebi que estava diante de uma criatura cheia de delicadeza e carinho. Que se traía sem se dar conta." - BUKOWSKI, Charles.

Cass voltou para a cidade e já nem queria saber quem tinha sido Buk. Estava ocupada demais recebendo o que sempre buscou ter: doses de disciplina.

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