terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Consertar

Quando percebi, ela já havia juntado todos os pedaços que quebrei, todas as roupas que já não serviam, todas as dores de cabeça que espalhara pela cabeceira da cama, e, cuidadosamente, havia arrumado tudo dentro de uma mala. Ela foi silenciosa - tinha essa mania de não querer incomodar, não querer se fazer notar.

Foi no momento em que ela me sorriu com um breve ódio que pude entender o que tinha dentro da mala e que ela não voltaria para buscar os sorrisos que deixara pendurados no varal da minha memória. A porta estava aberta e ela já havia atravessado o primeiro pé para fora. Por algum questionável motivo, o outro pé permanecia dentro do apartamento. Talvez ela suspirasse a dor de soltar os últimos fios; deixar de ser boneco de madeira para se transformar em mulher.
Tive medo. Ela estava decidida a ir embora e jamais olharia para trás. Como uma única reação, gritei. Gritei para que ela ficasse. Devagar, ela voltou seu rosto magro para mim, que, inerte, observava aquele único momento sem me dar por conta no que antecedera tudo. Por que ela tinha olheiras? Por que sua pele mostrava  tantos ossos? Por que tantas cicatrizes no fundo das pupilas? A face dela já não esboçava nenhuma reação e foi então que percebi que as mãos dela sangravam os cacos de vidro que ela mastigava.
A mala, que estava na rua, foi puxada para quase dentro do apartamento. Um pé seguiu do lado de fora e o outro do lado de dentro. Cansada, ela sentou em cima da bagagem e chorou. Chorou de uma forma tão dolorida toda a insuficiência dos passos que fizera até ali e eu, tão distante, não pude sequer limpar as lágrimas que lhe escorriam tão ligeiras quanto tempestade. As pessoas quebram.

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