sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Ausência

De repente tudo e de repente nada. Não entendo o motivo desse Sol lá fora. Desses sorrisos que pessoas lustras de suor conseguem dar enquanto engolem a gordura hidrogenada dos sorvetes de chocolate. Eu aqui: do lado de dentro, olhando para fora, atrás do vidro da janela.
Quando me chamam, eu já não respondo. Queria que as pessoas se acostumassem com minha ausência, assim como eu me acostumei. Fisicamente, talvez, eu ainda exista... Acho que ainda existo, sim, porque ainda sinto um breve calor em abraços, um remorso eterno por ser quem eu era enquanto existia. Mas apenas (e brevemente) no plano tátil, afinal, como explicar para as pessoas que tua única vontade é a de ficar deitada, sem fazer nada, pelo resto da vida? Como explicar - e elas entenderem - que isso não é preguiça, mas uma desistência de sentir, de pensar, de mim (...)?
Já é a quarta xícara de café que despejo pelo ralo sem beber um gole. Esfriou. Ninguém gosta de café frio. Ninguém gosta de pessoas doentes. A doença dos outros te consome, mostra o quão frágil todos somos, o quanto nos detestamos de verdade.
Todos os espelhos da casa, da faculdade, do banheiro do ônibus (...), todos me mostram uma pessoa que eu não sou. Ou que sou, mas que já há tempos não reconheço. Olhar para si e perceber que todas as cicatrizes que carrega o corpo, as marcas de acne no rosto, os talhos ainda não cicatrizados (...), tudo pertence a ti sem que se queira ser o dono de tal fardo. E quando se adentra o olhar no fundo das próprias pupilas, impossível não enxergar as ranhuras que esculpiram naquela coisa que chamamos de "alma" - ou que autorizamos que esculpissem em nós.
Arrancar pessoas de dentro é natural ao ciclo, Dr.. O problema maior não é o assassinato, mas o que se faz com os restos. Em mim carrego todo o odor típico e fétido da podridão do decomposto, moradia aos vermes. E são tantos que já caminho tão pesada pelas ruas exatamente por não conseguir mais encontrar o que outrora busquei por independência.



Tudo é um ciclo. Tudo funciona dessa forma. De repente tudo e de repente nada.

2 comentários:

  1. Como sempre, seus textos se mostram complexos, mas ao mesmo tempo tem aquela facilidade de leitura dos grandes textos. Nítido, facil e muito boa leitura. Muito fácil se identificar com ele. Parabéns!!

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  2. Como sempre, seus textos se mostram complexos, mas ao mesmo tempo tem aquela facilidade de leitura dos grandes textos. Nítido, facil e muito boa leitura. Muito fácil se identificar com ele. Parabéns!!

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