segunda-feira, 16 de julho de 2012

Aviso Prévio


Querido,

Escrevo-te uma carta – sim, uma dessas para que tu saibas que sou eu mesma que escrevo – para dizer que vou morrer. Todos vamos. Um dia, todos morreremos; mas eu vou antes. E vou porque quero. Por quê? Ah, ando muito doente. Muito doente! Muito... A doença? Hmm... Uma doença boba, pequena... Dê o nome de gripe, se assim convir. Pare de rir! Vou morrer. Vou morrer de gripe. Vou incutir uma gripe em mim para poder morrer. Aliás, morrer é diferente de matar. E eu vou matar. A mim. Então é isso, vou me matar com gripe.
Se já pensas que sou doida, então jogue essa carta no fogo e espere as notícias nos jornais, a visita da polícia para investigação, a ligação do IML para o reconhecimento do corpo e a minha mãe chorando e te perguntando o porquê disso ter acontecido. Engraçado eu dizer “ter acontecido”, pois ainda respiro. (Obviamente respiro, senão seria impossível te escrever essas letras tortas). Bom, vamos ao que interessa:
Já pensaste em como seria morrer? Em como seria pegar um caco de vidro, cravar na carne delicada do pescoço e ir rasgando (igual como as moças das lojas de tecido fazem com cetim)? Nesse ponto, o sangue iria escorrer eufórico corpo abaixo, colorindo a pele que nunca teve cor alguma. As pernas iriam fraquejar e, perdendo as forças, se dobrar até estatelar a patela com o piso. TÁC. Um barulho morto de um morto que tomba. A cena parece apetitosa, belíssima, com direito a palmas e cortinas vermelhas tombando para o fim da música orquestral. Mas essa é a visão de espectador. A visão de quem sente deve ser muito melhor!
Convenhamos, amor, a dor da carne rasgada é ótima. A adrenalina sobe, falta ar, vêem-se estrelas. A pressão vai caindo e o coração palpitando forte. Todo aquele sangue molhando as vestes, os sonhos, deixando estagnada a vida que não se viveu. Lírico. Mais bonito do que morrer de gripe, tu não concordas? Não entendo porque passas as mãos pelos cabelos. Desiste dessa raiva que te engole. Eu já decidi e assim vai ser. Ou foi. 
Não importa os trapos que o suicida usa. Sempre tem quem depois o vista com o melhor terno, perfume, maquie, entupa de flores... Ah, por favor! Sem flores. Que mania bem feia. Por que diabo as flores? Sabe, meu príncipe, eu passei a vida a avisar-te que detesto flores e tu passaste a vida a dar-me as pequenas plantinhas. Uma vez, até te disse: “se é para matar algo, que seja algo útil! Mata uma perdiz e traz para o almoço”. E tu riste de mim. Passaste a rir de mim desde que me conhecera. Nunca trabalhei em circo, querido, e, mesmo assim, palhaços também são seres humanos, também têm sentimentos e sofrem. Nós, seres humanos, sofremos, sabias tu disso? Pois eu sabia. Eu soube desde o primeiro tapa que me deste. Amor, não te desesperes, não estou te confundindo! Sei muitíssimo bem que nunca ergueste a mão para minha sombra; mas tuas palavras, meu lindo, como tuas palavras me doeram.
Amei-te com tanta devoção... Ainda te amo, diga-se de passagem; mas não te suporto mais. Não te suporto. Sempre corri para tentar ser a melhor, a mais doce das esposas, a mãe que tu não tiveste, a amante que tu nunca pagaste, a cozinheira do melhor restaurante de Paris... E tu ousaste me humilhar em todos esses anos. Nunca fui competente o suficiente, mesmo dando o sangue para poder ficar aqui contigo, a te dar todos os sorrisos - que nunca pediste, nunca olhaste, nunca valoraste. É agora o momento, amor: libertei-te. Libertei-te desse peso que fui, em tantos anos, tentando te impressionar e falhando nos pequenos detalhes.
Lamento ter sujado a cozinha que tu pagaste com o suor do teu trabalho. Porém, preciso pontuar que eu bebia o vinho, mais uma noite, sozinha, pensando com qual das secretárias tu estaria derramando teu leite, e a garrafa escapou-me entre os dedos. Caiu. Quebrou. Fez-se mil pedaços. Faltava uma taça ainda. Desperdicei vinho. Desesperada, lambi tudo. Tudinho! Cortei os lábios... E foi mastigando os pequenos cacos de vidro que percebi que podia eu acabar com tua aflição. Vamos, meu docinho, sorria. Abra as janelas, chame a moça da limpeza. Ela vai entender. Dê a ela uma boa gorjeta (sabes que ela merece).
Meu amor, creio que a carta deva terminar por aqui. Tenho os remédios do psiquiatra na mão, o vinho eu já bebi, a ampola de ar está esperando mergulhar pela veia. Permita-me. Estou indo. Eu te amo. Amo-te como nunca me permiti amar ninguém. Agradeço-te. Agradeço-te. Amo-te.
Agora, sorria e respira! Respira, pois eu já não posso mais. Boa noite.

2 comentários:

  1. Pequenas "nós" às vezes devem morrer pra que a gente possa viver em paz. Acredito no teu sucesso, amiga.

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  2. Querida,
    Escrevo para ti, agora, me desculpando. Naquela noite, fui forçado a me comunicar, já que as batidas das suas unhas vermelhas - fazendo TAC TAC no balcão do bar - estavam me deixando louco.

    Dei uma bicada na cerveja morna e olhei fixo para ela. Ela fechou um botão do decote.
    - Desculpa.
    - Relaxa.
    Era para ficar nisso, mas não estava dando certo.
    - Cansei de vocês.
    - E esse desabafo? Traz uma dose para a moça! E uma cerveja para mim. Sorte minha não ter filhos para alimentar, fim de mês tá fodendo comigo.
    - Obrigada.
    Ela fez descer seco – cowboy. Fez cara de estar bebendo gilete. Realmente, não era o tipo dela. Sorriu fechando os dentes.
    - Qual é o teu problema? Eu tenho bons motivos para ficar louco com mulheres. Mas se eu fosse o mulherão que tu és, não estaria desperdiçando lágrimas magoadas e conversando comigo.
    - Traição.
    - Foda. Sei como é... Trepar com o corpo de alguém mas a cabeça estar no mofo do teto do quarto.
    - Que merda! Ele deve estar dando uma agora com a secretária dele, aquela vaca. Ontem, entrou em casa e nem olhou pra mim. Será que é culpa?
    - Duvido muito, quem ama não trai. A coisa é bem mais que tesão.
    - Logo comigo, sempre tão segura... Mulher perfeita! Casei, lavei e cozinhei. Mulher perfeita sabe? Uma perfeita inglesa durante o dia e uma jovem francesinha à noite.
    E, realmente, era uma mulher perfeita. Olhei bem no fundo dos olhos azuis e tive certeza: eles me fitavam com um sorriso que se contorcia por trás da máscara da decepção. Aquela maquiagem cara se indo para um homem que não merecia alguém assim. Ela tremia e eu podia ver sua pele suar; aquelas belas pernas terminando em um salto agulha que não parava de se mexer.
    - Garçom, mais duas!
    - Obrigada, to só precisando desabafar com alguém.
    - Faz bem conversar. Conversou com ele já? Aposto que não! ... Tu não consegue encarar o que ele vai dizer...
    - Exato. Medo de ouvir o óbvio.
    Já estávamos ficando alcoolizados. Bocas amortecidas, olhares perdidos. Pedi mais duas. Trocando palavras com a língua enrolada, me mordi. Finalmente, tirou um cigarro, Marlboro Gold. Fumaça fina saindo tímida das narinas vermelhas. Ficamos nessa, por quase uma hora. No fim, estávamos tão bêbados que qualquer conselho seria impossível de ser dado. Bebemos feito porcos e, sinceramente, não tivemos uma noite muito produtiva: entornamos mais do que falamos. Saímos cambaleando e abraçados. Paramos na porta e ela chamou um táxi. Me ofereci para dividir. Ela agradeceu novamente.

    Aquela noite, o táxi me deixou em casa e te levou não sei pra onde. Subi as escadas cambaleando, vomitei e caí na cama. Hoje, só lembrança e comprimidos de omeprazol. E, óbvio, uma sensação estranha de que nunca iria te ver novamente.

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