segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Meu arrebol

Enquanto o céu negro e sem estrelas despenca sobre nós e o silêncio nos engole, há vida nessa casa. Uma pequena e faminta, que urge e ruge. Dentro e fora de mim. Insaciável.

Tudo mudou, com tanta violência e ferocidade, que eu nem sei mais o que me dói. Não sei, porque agora somos duas. A tua dor é a minha dor. A minha vida também não é mais só minha.

E Deus é bom. De um jeito misterioso, Deus é bom. Não aquele Deus bíblico e colérico, mas aquele algo maior que me protege de mim mesma há tanto tempo. Deus é bom. 

Enquanto o céu negro e sem estrelas despenca, estamos aqui. Enquanto o sol nos queima e o calor sufoca, seguimos aqui. Enquanto a chuva lava e as gotas congelam, ainda continuaremos aqui.

Não importa quantos trens seguirão viagem, quantas borboletas baterão suas asas, quantos passarinhos cantarão e nem quantos amanheceres coloridos nos embalarão: a Vida sempre vai estar presa nesses momentos - tão únicos e tão nossos. Só nossos. Dentro dos meus braços. 

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Ava

Well I just heard the news today

It seems my life is gonna change

I close my eyes, begin to pray

Then tears of joy stream down my face


With arms wide open

Under the sunlight

Welcome to this place

I'll show you everything

With arms wide open


Well I don't know if I'm ready

To be the man I have to be

I'll take a breath, I'll take her by my side

We stand in awe, we've created life.




segunda-feira, 25 de março de 2024

Tomates cereja

Era Natal. Eu seria anfitriã. Meu apartamentozinho saltava confusão para organizar a ceia. Minha família (numerosa) chegava. Tantas petisqueiras com petiscos diversos espalhados pela casa...

Gael chegou. A porta do meu apartamento estava aberta e ele simplesmente foi entrando. Eu estava na cozinha, suja de farinha, amassando pão e, quando o vi, abandonei a sova da massa e lhe ofereci uma cadeira para sentar. Sentei em outra.

Não nos falávamos, mas estávamos ali. Era estranho, mas familiar. O mundo ao nosso redor em polvorosa e nós desfrutando uma paz apenas nossa.

De repente, a ex-esposa de Gael também estava lá e sentou à mesa conosco. Ficamos tão desconfortáveis a ponto de puxarmos assuntos aleatórios e desconexos.

Na nossa frente havia uma petisqueira unitária com tomates cereja. Vermelhos e redondinhos. Discorremos sobre o quanto gostávamos daquele e não do "grande".

Ela estava ali, com olhos de abutre, pronta para mastigar nossa alma se lesse nas entrelinhas alguma mentira. Ao mesmo tempo, ela não estava. Não estava conectada com nosso assunto sobre tipos de tomates.

Em determinado momento, na ânsia de fazê-la se sentir incluída, falei que não sabia que haviam retomado o relacionamento. Ela me olhou com profundidade e ódio. Disse que nunca haviam se deixado.

Fui tomada por um grande calor de constrangimento. Não conseguia mais olhar para Gael. Era como se... se eu o olhasse talvez o comprometesse e faria sofrer. Senti vergonha.

Fernando chegou do trabalho. Ele estava sujo de poeira e terra. Olhou para toda aquela gente (que não parava de chegar) e me chamou. Disse que não sabia quem eram aqueles. Disse que eu teria que me explicar.

E eu me senti triste e confusa.

De volta à cozinha, lembrei do pão que eu pretendia terminar de fazer. A massa tinha estragado em meio à sova e eu não tinha mais farinha.

Olhei para o lado e vi ela sentada no colo de Gael. Beijavam-se. Reconciliados.

Senti abandono.

Fernando reapareceu, limpo. E eles sumiram.

Sentei novamente e me pus a comer os tomates cereja. Sozinha, distante, inerte. Todos me olhavam. Ninguém me via.




quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

If not us, then who?

Minhas vivências me fizeram ser um pouco esperançosa demais por tempos melhores, talvez... Mas é como aprendi a ser - sempre planejando o mais lindo que a vida pode nos entregar: um jardim florido, com beija-flores dançarinos. De fato, é uma pena que quase nunca seja efetivamente desse modo. A vida.


Coloquei Dylan para cantar para nós.. With all memory and fate drive deep beneath the waves / Let me forget about today until tomorrow...


As pessoas vêm e vão, ele me disse, mas eu sempre fico. Em algum lugar da vida dele, eu sempre fico..

Me fiz pensativa. Sempre que alguém sai da minha vida (seja por minha escolha, pela distância ou pela ação do tempo), me sinto triste; ora, tendo a guardar com muita doçura, na minha memória, o melhor das pessoas no momento em que aceitaram cruzar comigo enquanto andavam pelos seus caminhos... Se eu perdê-las de mim, de alguma forma, sei que me perderei também.

Têm pessoas que carregam consigo esta luz que direciona, que cantam a melodia que conforta, são um porto seguro enquanto o sopro gentil da madrugada aguarda o dia raiar, se mesclam às cores mais lindas que minha íris já beijou.




Li, em algum lugar, que nós não sabemos o quanto um momento é importante nas nossas vidas até que ele se torne uma memória... E quão triste é, afinal, uma vida sem o acalanto das memórias que nos fazem?

Como seria possível sentir esta breve paz se eu não carregasse em mim, sempre, nós, sentados no parque - tão jovens e repletos - rememorando o sentimento de lá estar, rodeados pela grama verde e sorridente.

Talvez seja isso o que chamam "viver". Talvez seja esse álbum de figurinhas tão único, onde organizamos, trocamos e colecionamos momentos. Mas nenhuma se repete. Nada volta. Nunca vai.

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Até a vida cansar de nós

Somos sempre partes, não é? Somos sempre pedaços. A vida nos quebra. Repetidamente. Ciclicamente. Talvez seja assim até o fim. Ou até ela cansar de nós.

A intensidade de viver dentro da minha própria cabeça sempre me destruiu. Talvez ninguém possa existir assim a vida toda. Tenho a impressão que aqueles que tentam acabam indo cedo demais.

Ser artista, de alma, talvez seja sofrer até o fim.

Muito sabia que tinha algo em mim de corajosa, selvagem, entregue à infinitude, singular...

É fato que já não sei mais escrever sobre os meus dilemas dilacerantes, mesmo que isso traga um certo "prazer" à alguém. Estranhamente, não me ofende. Saber que outras pessoas passam pela mesma bagunça é reconfortante. Eu mesma... Eu era tão jovem e já carregava tanto dentro de mim. Mastigava minhas cruzes, mas não engolia: mantinha minhas cicatrizes abertas.

Acho que eu queria viver - mesmo que já estivesse, de certa forma, meio morta. Eram ausentes as cores em mim. Era assim que eu me enxergava. Inocente. Profana. Bela.

A pele que eu visto segue estragada, mas já não me assombra (tanto). Parece que se transformou em uma saudosa lembrança violácea, dourada e suprema. Hoje, não tenho mais dúvidas que tudo aconteceu no momento certo. Eu me entreguei em pedaços e recebi pedaços. De alguma forma muito torta, eu me completei.

Talvez ainda tenha em mim alguma confusão, complexidade, sei lá. Hoje, contudo, me falta orgulho da pessoa que vejo no espelho todos os dias. Talvez eu tenha me perdido. Eu era tão livre...

A verdade é que nunca vou deixar de ser quem eu fui. E sinto vergonha disso. Também nunca mais vou conseguir ser quem eu aceitei ser por tanto tempo. E eu sinto paz.

Essa dicotomia...

Ser artista, de alma, talvez seja sofrer até o fim.